A 30ª edição da Feira do Livro de Passo Fundo terminou ontem (13), depois de duas semanas repletas de atrações culturais. A programação de domingo contou com apresentações de danças, oficina de violão e bate-papo com a autora do livro Noite Ilustrada, Thedy Corrêa, além do encerramento tradicionalista com o Momento Gaudério.
No entanto, um dos maiores destaques da feira do livro deste ano ocorreu no sábado, às 19 horas: o bate-papo com a jornalista mais premiada do Brasil e autora dos livros “Holocausto Brasileiro” e “Cova 312”, Daniela Arbex. Há 21 anos no jornal Tribuna de Minas, Daniela é repórter especial e coleciona mais de 20 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles estão o Knight International Journalism Award (2010), o prêmio IPYS de Melhor Investigação Jornalística da América Latina (2009) e três prêmios Esso. Na última sexta-feira (11), antes de pisar em terras passo-fundenses, Daniela Arbex conquistou o Prêmio Jabuti, o maior prêmio de literatura do Brasil. Seu livro mais recente, “Cova 312”, ficou em primeiro lugar na categoria Reportagem e Documentário. A jornalista já havia chegado perto do prêmio em 2014, com o livro “Holocausto Brasileiro”, que ficou em segundo lugar.
Resgate de memórias
Em entrevista ao ON, Daniela Arbex contou sobre o processo de escrita, os motivos que a levaram a continuar trabalhando em um jornal pequeno, o papel do jornalismo como resgatador de histórias e de memórias, seus novos projetos e a importância de eventos como a Feira do Livro.
O Nacional: Tanto no Holocausto Brasileiro, quanto no Cova 312, há uma preocupação em abordar a questão da dignidade humana. Esse é um tema que te toca? Que te faz buscar e tentar, através do teu trabalho, resgatar essa dignidade?
Daniela Arbex: Sim, porque são temas muito difíceis, mas necessários. Eu aprendi com uma colega jornalista que não escrevemos sobre o que as pessoas querem ler, mas sobre o que as pessoas precisam ler e nem sabem. Então eu acho que é um pouco isso: falar desses temas difíceis, que são invisíveis, e falar sobre essas pessoas esquecidas, esses indesejáveis. Eu sempre digo que eu falo de pessoas que, geralmente, não seriam notícia de jornal. Eu dou visibilidade para elas.
ON: Havia certa indiferença quanto às histórias retratadas nos dois livros, até que você as trouxe a tona. Em sua opinião, qual é o papel e a importância do jornalismo como um resgatador de memórias e de histórias?
Daniela: O Geneton Moraes sempre dizia que fazer jornalismo é produzir memória, e em um país como o nosso, de esquecimento e pouco registro da história, o jornalismo tem um papel fundamental. Não somente de dar voz aos socialmente mudos, mas também de fazer a produção dessa memória. Por exemplo, o Holocausto é uma história que já havia sido contada nas décadas de 60 e 70 e que foi completamente esquecida. A gente resgata essa história a partir do olhar dos sobreviventes, que nunca tinham sido procurados, que nunca tinham falado sobre o que passaram. A gente conta essa história sobre um novo ângulo e a voz deles toca o país. Eu acho que esse trabalho, especificamente o Holocausto Brasileiro, está contribuindo para o resgate e produção de memória. Ele foi adotado não somente por vários cursos universitários, mas também por Ensino Fundamental e Médio. Recentemente, adolescentes foram me entrevistar no jornal e eu fiquei super comovida. Eu falei “Tá vendo? O que eu queria era isso. Agora a minha geração conhece essa história, a geração de vocês conhece e seus filhos com certeza conhecerão”.
ON: Como é o processo de abordagem dos personagens? É difícil conseguir fazer com que eles se sintam confortáveis e abram as portas para você?
Daniela: Engraçado... Esse processo para mim, hoje, já é muito natural. Mas é um processo de muito respeito, tanto de quem vai denunciar, quanto de quem é vítima. Sempre procuro ouvir com o maior de respeito, sem julgamentos e aberta para essa escuta. Muito frequentemente, eu ouço essas pessoas dizerem “Nossa, eu nunca falei sobre isso. Eu nem sei por que estou te contando”. Em uma coletiva que a gente fez no Festival do Rio sobre o documentário do Holocausto Brasileiro, perguntaram ao diretor, que trabalhou comigo no filme, “Como vocês conseguiram fazer essas pessoas contarem essas coisas dessa forma, revelarem esses segredos em frente às câmeras?”. E aí ele falou “Isso é um processo da Dani. Ela consegue chegar muito perto de todos”. Eu me sinto muito grata mesmo de entrar na vida das pessoas, de elas confiarem seus segredos a mim e acreditarem que o que eu quero fazer com isso é transformar vidas através da história delas. É muito poderoso. É um privilégio.
ON: Antes de virar livro, a história do Hospital Colônia foi uma série de reportagens que você realizou no Tribuna de Minas. Como foi o processo de escrita ao transformar essa série em um livro?
Daniela: Eu não usei nada da série. A linguagem é totalmente diferente. Apesar de o meu texto no jornal ser muito literário, há uma questão de objetividade, de espaço. Você tem que dizer tudo nas primeiras linhas e fisgar o leitor para ele ler até o final. No livro, a narrativa é muito mais livre, você pode começar de trás para frente, como eu faço no Cova 312. Eu começo nos dias atuais, dentro da penitenciária onde esse militante foi morto e vou voltando na história, até chegar o momento de reconstituir a morte dele. Então, eu sabia que eu não poderia aproveitar esse material, simplesmente migrar ele do jornal para o livro. Eu não teria um bom resultado. Eu fiz absolutamente tudo de novo e com muito mais profundidade. Eu fui ouvir todo mundo mais uma vez, olhei olho no olho, voltei em algumas casas até cinco vezes. Eu fiquei um ano e meio resgatando essas histórias, conversando com todo mundo de novo e só então comecei o livro.
ON: Quando você se interessou pela história de Barbacena, precisou de dois anos até convencer o jornal a fazer essa pauta. Como foi isso para você?
Daniela: Quando eu vi as fotos feitas no Colônia e descobri essa história, em 2009, eu fiquei enlouquecida, era tudo que eu queria. Eu cheguei ao meu jornal muito impactada, mas é um jornal de porte pequeno e minha chefe disse “Dani, a gente não pode dispor do seu trabalho agora, vamos pensar em outra oportunidade”. E a oportunidade não chegava nunca. Aí em 2011 eu disse “Eu vou embrulhar essa pauta para presente”. Foi no ano que as fotos completaram 50 anos. Eu achei que seria um gancho maravilhoso e tudo no jornal culminou. Aí eu comecei a procurar os sobreviventes e foi um trabalho muito emocionante encontrar um por um. Funcionários e ex-funcionários folhearem centenas de vezes as imagens para ver se eles conseguiam reconhecer alguém ali, para eu procurar. Foi um processo artesanal e gratificante.
ON: Em relação ao processo de imersão na história, como é para você depois que acaba?
Daniela: Olha, eu tenho uma má notícia, porque não acaba [risos]. Não tem como você passar por uma história como essa, fazer uma escuta de histórias tão dramáticas, e não sair diferente. Não há como desligar, mas é claro que isso não pode te consumir a ponto de você não conseguir viver a própria vida. Sempre que eu estou fazendo a escuta dessas histórias, é meio sufocante estar há muito tempo envolvida e querer compartilhar com outras pessoas. Em certo momento você pensa “Meu deus, eu preciso escrever, eu não aguento mais”. Então, sempre que eu estou envolvida nisso, eu tento pensar que o que eu estou fazendo é dar voz a esses socialmente mudos, pensar nessa missão, e aí as coisas ficam um pouco mais leves. É claro que eu não fico 24 horas pensando nisso, mas os personagens do Holocausto e do Cova entraram na minha vida e eles não saem. Você cria um laço. Algumas pessoas ainda te ligam e você liga para saber como elas estão.
ON: Por que essa opção de continuar trabalhando no Tribuna, um jornal impresso e pequeno, mesmo tendo oportunidade de trabalhar em veículos de abrangência nacional?
Daniela: Essa é uma pergunta que sempre me fazem. Recebi muitos convites e de ótimos veículos, mas eu sou muito feliz fazendo o que eu faço. Eu moro numa cidade em que eu tenho qualidade de vida, eu levo meu filho para a escola, eu gosto da minha casa. Eu vivo para o jornalismo, mas eu não queria que isso fosse uma obrigação, que eu fosse para um grande centro e passasse a morar na redação. Eu sempre fui muito feliz no Tribuna. É um jornal local, mas é um jornal corajoso, já fizemos coisas muito maiores que o porte jornal e muito poderosas. Ao mesmo tempo, eu penso que por ser um jornal menor acabou melhorando a minha forma de apuração. Eu fui evoluindo na minha técnica. Eu tinha que estar sempre muito bem documentada para tudo que eu fosse fazer, para que o jornal não fosse processado, e aprendi muito com isso. Essas dificuldades me ensinaram a trabalhar nas adversidades.
ON: O tema da Feira do Livro de Passo Fundo é “Muitas histórias para contar”. Você acha que esses eventos, com bate-papos e palestras, incentivam as pessoas a contarem essas histórias? E, talvez, fazer um jornalismo independente?
Daniela: Eu acho que é uma oportunidade de as pessoas estarem perto dos autores, de quem elas gostam de ler, e de conversar sobre esse fazer jornalístico. É um momento para mostrar para as pessoas quais são os desafios, de permitir que as pessoas valorizem essa profissão, porque é um desafio tão grande escrever um livro e algumas pessoas pensam que é só sentar e contar. Não é assim, tem um processo muito longo e solitário. Acho que é um evento para a promoção de cultura. Estimula esse contato com os autores e é muito gostoso para o autor também. Estar perto do público e ouvir o que eles têm a dizer são coisas que estou vivendo muito agora, rodando o Brasil. O meu trabalho sempre teve impacto, mas é no meio jornalístico e o retorno era por e-mails, não era cara a cara. O contato pessoal é ainda mais prazeroso.
ON: E sobre as novidades? O que vem por aí?
Daniela: Muitas coisas! Vem o documentário, que estreia dia 20 de novembro no canal MAX. A gente fez duas pré-estreias e o filme foi muito bem recebido. Eu acho que vai surpreender até os leitores do livro. Ele é, esteticamente, muito bonito, mas é muito duro. A HBO está muito apaixonada por este projeto e ele vai ser lançado em 40 países. Sobre o novo livro, eu só posso dizer que vai ser lançado pela editora Intrínseca. É um assunto perturbador, mas é incrível.
ON: Você teve a preocupação de quando fez o documentário estar junto, na linha de frente, vendo tudo acontecer. Você teve também a preocupação de o documentário transmitir bem o livro?
Daniela: Quando a HBO me contatou para comprar os direitos, eu disse que venderia, mas queria estar perto. Eles me disseram “Então você produz” e eu pensei “Mas como?!”. Foi muito novo. E o que eu queria no filme era manter a delicadeza, manter esse cuidado com as pessoas, porque o assunto já é muito pesado por si só. Eu não queria pesar a mão, porque não precisa. A gente quase não usou trilhas, o filme é silêncio e revelações. Ele é todo emoção. E aí eu vi que não é tão diferente do que você faz para um jornal, para um livro... A base é a mesma: a qualidade da apuração. É ter sensibilidade ao falar com as pessoas e deixar elas à vontade. Eu queria esse respeito e a gente conseguiu. Não fiquei muito preocupada em manter o livro, porque o filme não esgota o livro e o livro não esgota o filme. Eles se complementam. Sempre me perguntam se farei continuação do Holocausto Brasileiro, mas eu não quero mexer nele, é um livro único e ele já está pronto. Eu não quero esticar, por mais que ainda haja muita coisa a ser dita. Então, o filme me deu essa oportunidade. Eu tive a chance de trabalhar na direção, e é a primeira vez que faço isso, mas tive ao meu lado um cara muito experiente, o Armando Mendz. Foi bacana porque nossos trabalhos se complementam. Ele tem uma visão de set e eu tenho uma visão de gente. Enquanto ele cuidava da parafernália, eu ficava com as pessoas, para que elas se sentissem à vontade. Estou muito feliz com o resultado e espero que todo mundo goste.