Um bom livro de literatura infantil não é aquele que tenta doutrinar ou moralizar seus leitores. Não é, tampouco, um manual de comportamento. Um bom livro para crianças é aquele que rompe as barreiras da idade e fala com uma voz gerada na memória. Uma voz oriunda e nutrida na infância de quem escreve.
Um bom livro de literatura infantil é um livro honesto.
Um exemplo de livro assim é Where the Wild Things Are ( Onde Vivem os Monstros, na tradução brasileira) de Maurice Sendak. Nele conhecemos Max, o protagonista, um menino vestido em uma fantasia de lobo, perseguindo seu cão com um garfo e aprontando de tudo pela casa. A mãe o repreende e o chama de “selvagem” e ele na mesma hora grita: “vou te devorar”. Max é então mandado de castigo para seu quarto sem o jantar. Lá, louco de raiva, Max vê uma floresta se formar e tomar conta de tudo. Em seguida surge um oceano e um barco com seu nome. Ele sobe no barco e veleja por muito tempo até a terra onde estão as Coisas Selvagens. No início elas parecem muito assustadoras, com olhos grandes e garras e dentes afiados, mas ele as confronta e as domina, olhando bem em seus olhos, e elas o elegem “o Rei das Coisas Selvagens”. Max ordena então que se comece a “bagunça selvagem”, mas até ele se cansa de tanta desordem e ordena: fiquem quietas, e as manda para a cama sem jantar. Cansado de ficar sozinho, Max começa a sentir um cheirinho de comida e embarca de volta para seu quarto, para descobrir que seu jantar estava lá esperando, ainda quentinho.
Where the Wild Things Are fala da raiva, não só infantil – mas a raiva comum a todos os seres humanos – e do poder transformador da imaginação e da criatividade na formação da resiliência e da força para encarar, aceitar e dominar essa raiva e fazer o retorno ao nosso “eu” mais tranquilo e maduro. Não é fácil aceitar a existência de nossos monstros internos, mas se dermos um jeito de encará-los e dominá-los, seremos seus amos e não ao contrário.
Todos nós ficamos zangados uma vez ou outra, mas se tentamos esconder e abafar nossas “coisas selvagens”, talvez elas se tornem grandes e ferozes demais e percamos o controle. Precisamos, como Max, de um tempo e de um espaço a sós com nós mesmos , em nossa floresta interna, para conseguirmos dar conta de nossa complexidade monstruosa.
Ao contrário de histórias que pretendem “ensinar” às crianças a serem boazinhas e obedientes, Where the Wild Things Are, de Sendak, mostra que todos nós – inclusive nossos pais, aqueles seres que na infância julgamos “perfeitos”- sentimos raiva e magoamos quem amamos de vez em quando. É possível, contudo, fazer o caminho de volta e nos reconciliarmos. Seja mandando nossas Coisas Selvagens ficarem quietas, seja por um prato quentinho de comida no quarto de quem, com a cabeça quente, tiramos o jantar.