OPINIÃO

Ilusões consentidas

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Virgílio, pouco antes de morrer, pediu aos amigos que queimassem o manuscrito do seu famoso poema épico, Eneida, ainda incompleto para o gosto dele. Com isso, acabaria de vez com os penosos onze anos de trabalho que havia dedicado na busca de uma perfeição inatingível. Algo parecido teria feito Franz Kafka, muitos anos depois. Segundo consta, Kafka, sofrendo de tuberculose e sem esperanças, encarregou o amigo (e posterior biógrafo), Max Brod, de destruir os originais dos textos que lhe asseguraram a fama, como um dos maiores escritores do século 20.

O ponto em comum desses dois episódios famosos é a ilusão consentida. Virgílio não poderia ignorar que contaria com a desobediência piedosa dos seus amigos. E o mesmo vale para Kafka, em relação a Brod. Além do mais, quem quer realmente o desaparecimento de seus escritos não delega esse tipo de tarefa para ninguém. Faz por conta própria. Virgílio e Kafka, no fundo, não desejavam a destruição de suas obras, como analisou, com maestria, esses episódios, Jorge Luis Borges: Virgílio e Kafka queriam mesmo era fugir da responsabilidade que uma obra sempre impõe ao seu autor.
Virgílio, acredita-se que tinha, sobretudo, preocupações de ordem estética, para fazer esse tipo de pedido. Era o que se pode chamar de perfeccionista. Não foi por nada que, praticamente, serviu de modelo a toda poesia que se escreveu no Ocidente até o século 18 (Camões, Milton e muitos outros são virgilianos). Também foi uma espécie de poeta oficial do imperador Augusto. Escreveu parte de sua obra em Nápoles, onde terminou o poema bucólico Georgica (Geórgicas), despendendo sete anos nessa exaltação à natureza e aos lavradores. Sua maior obra foi a epopéia Eneida, na qual gastou onze anos, e estava completa, mas ainda não perfeitamente burilada, para o seu gosto, quando morreu, na volta de uma viagem à Grécia.
A Eneida é também uma obra de propaganda. Inventando para o Império Romano uma nobre origem troiana, Virgílio criou um novo mito. Era uma idealização das virtudes que fundaram e mantiveram o Império Romano. Dante perceberia isso e, não por outra razão, elegeu Virgílio como seu guia na viagem pelo outro mundo.
Quanto a Kafka, o caso é mais complicado. Seu trabalho versa sobre o tema da relação moral do indivíduo com a divindade e com o seu incompreensível universo, envolvendo desesperança e alienação. Tem uma consciência religiosa, e, acima de tudo, judaica. Quem sabe quis ter escrito páginas de felicidades e não de tristezas, mas não condescendeu em produzi-las, marcado por um sentimento de culpa exacerbado, pelo judaísmo que o separava da maioria dos homens. Além das influências do ambiente de Praga, cidade medieval gótica dotada de elementos eslavos, alemães e de barroco sombrio. Também teve uma vida emocional conturbada, com noivados e amores infelizes, que acentuaram o sentimento de solidão e desamparo que nunca o abandonaria.
Ainda vivo, Kafka publicou A metamorfose, em 1915, talvez a sua obra mais popular, em que o personagem acorda, certo dia, transformado num imenso e repugnante inseto. Suas obras-primas, O processo (1925) e O castelo (1926), foram publicadas postumamente por Max Brod.
Contra o desejo expresso de Kafka, que queria que seus inéditos fossem queimados após sua morte, Max Brod publicou romances, texto em prosa, correspondência pessoal e diários do escritor. Talvez por ver sua obra como um ato de fé, e não querer que ela desencantasse a humanidade, Kafka fez esse pedido ao amigo. É possível que soubesse que estava se iludindo.
Virgílio morreu em 21 de setembro do ano 19 a.C., em Brindisi. E Kafka, fragilizado pela tuberculose, depois de ter deixado definitivamente o emprego, em 1922, e passado o resto da vida em sanatórios e balneários, acabou morrendo em 3 de junho de 1924, em Kierling, perto de Viena. Ambos partiram para o outro mundo com a ilusão consentida de que os amigos queimariam seus escritos. Ainda bem que não o fizeram. E eles, provavelmente, sabiam disso.

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