São muitos os Faustos. Desde o personagem histórico que, pelo envolvimento com magia, adivinhações, alquimia e um pouco de charlatanismo, ajudou a forjar, na Europa Central, o mito do culto do Doutor Fausto - o homem que, conforme reza a lenda, vendeu a alma ao Diabo -, até o personagem literário imortalizado por Christopher Marlowe, Johann Wolfgang von Goethe, Paul Valéry e Thomas Mann, entre outros. Em meio a tantos Faustos, sobreviveu, principalmente, o mito criado pela genialidade de Goethe. Uma olhada na obra de Jayme Mason, “O Dr. Fausto e seu Pacto com o Demônio”, editora Objetiva (1989), conforme proposta dessas breves notas, talvez nos ajude a encontrar o outro Fausto, aquele que, sintetizando o confronto entre a tentação e o desejo, pode estar oculto em cada um de nós.
Mefistófeles e Dr. Fausto são os dois personagens centrais do drama imortalizado por Goethe. O primeiro representa o Príncipe das Trevas, o inimigo de Deus, aquele que tudo sabe e (quase) tudo pode. E o segundo o pecador que recebeu o fruto do conhecimento de tudo em troca de sua alma. No território das emoções, Mefistófeles é a tentação e Fausto o desejo, cujos desdobramentos, muito mais além da nossa herança judaico-cristã, em que é natural que a tentação seja representada pelo Diabo e o castigo por ceder a ela sempre sobrevenha.
O Dr. Fausto, misto de lenda, história e literatura, vive a nossa espreita em cada esquina. Nada mais sensato, então, que conhecê-lo um pouco melhor a partir de Goethe. O Fausto de Goethe é representado por um sábio que na velhice, recluso em seu gabinete, começa a se indagar se valeu a pena a vida de sacrifícios e estudos para dominar a ciência e a filosofia. A questão central, que também nos diz respeito, resume-se na busca de resposta à pergunta se o homem, entregue a seu livre arbítrio e exposto às atrações do pecado, conserva, ao fim e ao cabo, a sua bondade e consegue salvar-se; como bem sintetizou Jayme Mason.
Goethe escreveu o seu Fausto em três momentos diferentes. O Fausto Primitivo (Urfaust) data de 1775. É o embrião do Fausto I, de 1790, que foi publicado em 1806, vindo a se juntar ao Fausto II, de 1833, na completude, publicada post-mortem, da obra goetheniana. O titã de Weimar transferiu para os personagens da sua célebre obra, segundo Jayme Mason, o seu reconhecimento de vaidade e os despontamentos, que o suposto saber humano pode levar a cada um de nós a experimentar. O Fausto I é obra de um Goethe jovem e o Fausto II de um escritor já em idade avançada. Isso talvez explique as diferenças notórias entre ambos. O primeiro é mais simples e o segundo exige uma cultura clássica mais apurada de parte do leitor.
Um Fausto ansioso por abandonar o saber livresco torna-se presa fácil de Mefistófeles, que autorizado pelo Padre Eterno, lhe propõe o pacto de servi-lo por toda a vida, dando-lhe todos os prazeres desse mundo, em troca da sua alma depois da morte. Quantos de nós, pegos em idade avançada, resistiríamos a uma proposta como essa? Rememoremos a cena da Cozinha de Feiticeiras, que após alguns exorcismos, Fausto bebe a poção mágica que lhe devolve a juventude. Advém a conquista amorosa de Gretchen (Margarida), a morte do filho, o enlouquecimento e morte de Gretchen, o romance com Helena, a morte de Eufórion (homenagem de Goethe a Byron), a conquista de terras para o imperador, o confronto e a critica velada de Goethe à política latifundiária da Igreja, até a morte de Fausto idoso e seu enterro por Lêmures (espectros, fantasmas, duendes) com Mefistófeles à espreita da saída de sua alma para arrastá-la ao inferno. Enquanto isso anjos espalham rosas e lutam com o Diabo, Gretchen também aparece ... Quer saber o desfecho? Leia o Fausto de Goethe, sugiro.
Os versos de Goethe, por meio das experiências a que Fausto é submetido, trazem a tona muitas das nossas contradições ao lidar com coisas como o amor (o envolvimento com Gretchen), a beleza (o contato com Helena) e o poder (o acordo com o Imperador, o Fausto governante). Que cada um de nós identifique o seu Fausto e espante o seu Mefistófeles.
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