A frase acima bem que poderia ser uma referência à Marcha da Quarta-feira de Cinzas, um clássico da parceria entre Vinicius de Moraes e Carlos Lyra, em 1963. No entanto, trata-se de uma opinião contundente sobre a atual situação do carnaval de rua de Passo Fundo, a partir do ponto de vista de uma autoridade no assunto.
Integrante da família que fundou o Clube Visconde do Rio Branco, referência na história cultural da cidade, a professora Djanira Ribeiro costuma dizer que já brincava o carnaval quando ainda estava na barriga da mãe. Nascida e criada entre rodas de samba e alegorias, assumiu a batuta da escola ainda jovem e revolucionou os desfiles em Passo Fundo.
Espécie de coringa, ela atuou em quase todas os setores da escola. Desde a criação dos enredos, desenhos e confecção das fantasias, passando pela composição e interpretação do samba-enredo. A família varava as madrugadas costurando tecidos para materializar o sonho na avenida.
Desta fase, orgulha-se de ter sido a primeira a trazer elementos que já estavam consolidados nas escolas do Rio de Janeiro, mas que ainda não era utilizados em Passo Fundo, como as figuras do mestre-sala e porta-bandeira, introdução da harmonia para acompanhar a bateria, e comissão de frente.
Com o fim do Visconde, a carnavalesca trocou o azul e branco pelo vermelho e branco da Bom Sucesso. “No barracão construído de costaneira, na vila Operária, aconteciam os maiores bailes de carnaval da cidade, comandados por Calierão. Quando saía o resultado e nossa escola era campeã, a bateria vinha de manhã cedo aqui em frente de casa comemorar” recorda. Djanira também fez história no carnaval de Santa Maria com a conquista de um título no comando da Unidos do Itaimbé.
Aos 70 anos e afastada dos desfiles nos últimos anos, ela não hesita em afirmar que o carnaval de rua de Passo Fundo acabou. A análise da professora leva em consideração diversos fatores. Um deles, talvez o principal, está na forma como as escolas passaram montar seus desfiles, trazendo de outras cidades, casal de metre-sala e porta-bandeira, intérpretes, comprando samba-enredo pronto, e adquirindo fantasias já utilizadas em desfiles anteriores.
“Não se pode pensar apenas em ganhar o carnaval. Uma escola começou a importar, as outras foram atrás, num efeito cascata, pagando um dinheirão para um casal de mestre-sala e porta-bandeira. Temos que investir e valorizar o nosso pessoal”.
Djanira destaca que o processo de construção de um enredo, das fantasias é o que dá sentido e vida para uma escola. “Não tem mais aquela coisa de sentar com o pessoal da escola, definir o tema, como será feito. Com esta mudança, estamos deixando de investir na renovação, nas novas gerações. Vem tudo pronto, trazem até a harmonia. Já vi uma ala inteira importada. Homens e mulheres desfilando sem saber o samba-enredo. Por isso, digo que o nosso carnaval acabou. Os valores que temos aqui ficaram no ostracismo. Foram esquecidos, trocados por outros. Entendo que as coias evoluem, passam por mudanças, mas no caso do carnaval elas pioraram” avalia.
A professora vai além e diz que esta 'importação' não permite que os componentes da escola tenham uma compreensão daquilo que estão representando na avenida. “Há um esvaziamento de conteúdo. Neste sentido, sou obrigada a concordar com algumas pessoas, esta representação deixa de ser cultura”. Para ela, o dinheiro investido na contratação do pessoal de outras cidades, poderia ser direcionado na formação e aprimoramento de mestre-salas e porta bandeiras das escolas de Passo Fundo.
Apoio
A professora inclui ainda em seu diagnóstico, a falta de apoio do poder público para o Carnaval. Na visão dela, o município poderia ter uma participação mais efetiva. Uma das alternativas, cita, seria a garantia de um espaço para as escolas realizarem eventos durante o ano para obtenção de recursos. Como exemplo, aponta a cidade de Santa Maria. “O prefeito de lá cedeu, através de comodato, um pavilhão. As agremiações fazem promoções o ano todo. Não ficam dependendo apenas do recurso da prefeitura” comenta.
Sobre o cancelamento do desfile de rua, pelo segundo ano consecutivo em Passo Fundo, atribui à falta de vontade das lideranças. Também criticou o argumento usado no ano passado de que a verba que seria repassada para as escola de samba, foi investida na compra de ar-condicionado para as escolas do município. “Sabemos que cada secretaria tem seu orçamento específico, o qual é definido previamente. No caso da secretaria de cultura, parte dos recursos já é previsto para o carnaval”.
Coordenadora do grupo Alforria, fundado há cinco anos, como um espaço de resistência e defesa das questões envolvendo os negros, Djanira disse que, para este ano, a entidade chegou a propor a realização de um carnaval infantil na praça do Boqueirão, mas não conseguiu apoio. “Chegamos a conversar com a Secretaria de Cultura. Pedimos apenas a instalação de banheiros químicos, som e segurança. De início a ideia foi bem aceita por eles, mas não nos deram mais retorno, então desistimos” afirma.
Preconceito
A carnavalesca muda o tom da voz, ao abordar outro aspecto que sempre esteve presente no dia a dia de quem se envolve com carnaval em Passo Fundo: o preconceito. Ela critica a visão distorcida que parte da sociedade insiste em manter sobre o evento. “Basta realizar um debate sobre o assunto para ouvir que carnaval é 'sem- vergonhice, coisa de pessoas nuas e embriagadas. Essa frase dói muito. Carnaval é uma festa popular, que envolve a família. Basta ir lá na Cohab e ver como a família do Neri conduz aquela escola (Academia de Samba da Cohab I). Todo mundo envolvido. Pode acontecer algum excesso, como qualquer outra festa, de qualquer outro segmento cultural, mas não podemos generalizar desta maneira” desabafa.