O mundo como vontade e representação de Schopenhauer reverberou nos mais diversos pensadores há 300 anos, quase tanto como Sócrates quando sabiamente revelou que nada sabia. O mundo é uma representação, está aí e pronto, é fruto da experimentação. Pode ser lindo ou não dependendo da subjetividade ou da vontade. Compreender o mundo e a vida requer um mergulho introspectivo, uma imersão poderosa quando acompanhada de alguns anos de existência e de contemplação sobre a balança de erros-acertos.
Minha mãe era para ser Miguel, ao nascer menina estabeleceu-se Miguelina, para o mundo e Neca, para os íntimos. Era espírita, altamente romântica; foi de um grupo de danças flamencas em outra vida e isso era absolutamente claro para ela. À noite via, projetada na parede do quarto, pessoas dançando em grupo e com castanholas. Miguelina-Miguel-Espanha era de um romantismo quase ingênuo e era de duas vidas; uma como representação e outra como vontade. Assim como a personagem de Cecília (Mia Farrow) de A Rosa Púrpura do Cairo (Woody Allen) que tinha um marido bêbado e violento (mundo da representação), a personagem era apaixonada pelo personagem do filme (mundo da vontade), o oposto de seu marido. Cecília tinha uma vida e amava outra. Neca era fascinada pelos filmes musicais, tal qual foi sua vida anterior. Enacantava-se por Fred Astaire-Gene Kelly-Cyd Charisse-Ginger Rogers. O mundo da vontade de Neca-Miguelina-espanhola era de cores e de coração, era iluminado pela magia e arte que lhe faltava no mundo da representação. A dança de Neca era com seus seis filhos e limpando a casa, fazendo almoço, cuidando de meu pai como se mais um filho fosse.
Ela-miguelina-espanhola, ao contrário de Neca semialfabetizada, deve ter tido acesso a Miguel de Cervantes e seu Don Quixote, um herói romântico-sonhador-corajoso que vê a beleza no que a maioria não vê, aquele que consegue transformar a realidade em beleza. Talvez tenha lido as histórias de Simbad-Ali Babá-Aladim que Sherazade contava ao sultão Shahyar nas Mil e Uma Noites. Talvez, ainda, tenha admirado Henry David-Thoreau na obra Walden ou a Vida nos Bosques onde, numa simples cabana às margens de um lago em Massachussetts aprendeu a contemplar a simplicidade das coisas e estabeleceu: o homem é rico na medida do número de coisas de que é capaz de abrir mão.
Domingo, o musical La La Land concorre ao Oscar. É um musical de sapateado, é um mundo de vontade. Minha mãe torceria fervorosamente para ele, em respeito aos velhos tempos. Ah, minha velha, tantas coisas tinhas a me ensinar! De repente, veio-o me Neca, visitar meu mundo da vontade. Aí, aquelas coisas de sempre: garganta apertada, olhos marejados, opressão torácica, coisas de filho.
Quando ela foi enterrada, naquele sábado, fui trabalhar como palestrante na casa André Luís. Foi em homenagem a ela e a um filme que ela descreveu sobre a primeira grande guerra: um maquinista tem seus cinco filhos levados à luta. Sabedor que um deles morreria em combate recebeu meses depois em sua casa, ele e a esposa, um oficial com a bandeira do país e uma caixa de medalhas. Perguntou ao oficial: quem deles? O oficial respondeu: infelizmente todos. Depois de recomposto o velho ferroviário disse à esposa que iria trabalhar porque nunca havia faltado ao serviço por qualquer motivo. Ao manobrar a máquina e os vagões vislumbrou seus meninos-crianças a acenar ao velho pai no velho local de costume. E, então, coisas de pai: garganta apertada, olhos marejados e insuportável opressão no tórax, era o mundo da representação manifestado e que, naquele momento suplantava o mundo metafísico. Te amo, velha Neca, na vontade e na representação, saudade de dançar e cantar contigo.
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