OPINIÃO

O muro

Por
· 2 min de leitura
Você prefere ouvir essa matéria?
A- A+

Ramon-Alana, filho e nora, editaram um vídeo comemorativo à formatura Da Medicina de seu amigo de séculos João Basegio. Inevitável assistir ao mesmo sem relembrar meus passos e parte de minha juventude deixada intramuros, intraparedes e intrapáginas de cadernos, apostilas e livros. Nesta imensidão de informações e conhecimentos técnicos entre os anos de 1976-1982 plantei desempenho muitas vezes prejudicados por coisas da vida como saudades, dificuldades financeiras, angústias próprias da idade e decepções sentimentais. Claro que teve um milhão de alegrias e aos quais devo agradecimentos eternos a todos que participaram de minha vida no  apoio ou na crítica.

Houve momentos de vacilações, evidentemente e quero me referir a dois. O primeiro foi em 1980 quando estava no quarto ano e a primeira criança que vi morrer e o imenso sofrimento dos pais e avós, logo aquela criança tão doce e adorável, como todas as crianças. Foi então que experimentei a teodiceia, a propriedade de conferir ao Criador as possibilidades de coisas ruins que possam nos acontecer. Perguntava-me se morte de inocentes fazia parte do plano do Criador e que Criador era aquele que permitia morte de inocentes? Naquela tarde de quinta, sentei-me em um dos bancos da Praça Tamandaré e fiquei por três horas a observar crianças nos balancinhos. O que eu queria de verdade para meu futuro? Na medicina seria também vivências de dores e frustrações. Estaria disposto a encarar? Pensei, então, que talvez, num futuro próximo, a minha atuação poderia fazer a diferença entre desespero e esperança; então voltei ao mundo intramuros do hospital.

Em 1982, numa tarde de domingo-plantão junto com então residente Luis Carlos Trombini, postamo-nos na portaria do São Vicente, junto à rampa de acesso às ambulâncias. Estava angustiado, talvez pelas imensas responsabilidades do médico prestes a ser formar. Muro prá lá -  pessoas caminhando, namorados de mãos dadas, crianças de bicicletas, o embriagado com uma latinha de cerveja, o homem ouvindo rádio, o garoto caminhando com uma bola de basquete sob o braço. Sim...sim...havia dois mundos de possibilidades para minha pessoa. Do muro para lá parecia mundo de Baco ou Dionísio, mundo das alegrias e prazeres, mundo das despreocupações; do muro para cá era mundo das formas ou de Apolo, mundo real dos desafios, do estar preparado permanentemente para poder ser o diferencial ao enfrentar perigo real e imediato à manutenção da vida ou do estado de saúde ao paciente que, na maioria das vezes, era um ser absolutamente desconhecido. Olhei angustiado o muro como desafio e ...novamente adentrei ao hospital.  Era assim, era para ser assim e foi assim como o resto do céu no mar, como a brisa na preamar (Água – música de Ruy Barata e letra de Paulo André na voz de Fafá de Belém, 1977).

João Basegio, amigo de Ramon, venceu também seus demônios e se conservou intramuros, sem sequelas. Meu filho e Alana compuseram um vídeo de formatura que estampasse o orgulho da gente em ver a garotada, agora formando, competente chegando – avisa lá, avisa lá, avisa lá que eu vou - para a missão abençoada. Também objetiva mostrar o olhar e a alma cândida de nossas crianças, aquelas que cuidarão de nós, logo ali, no futuro que se aproxima rapidamente.

Em tempo, já faz uma ano que Armando Ferreira, o Manduca, deixou-nos. Além da saudade deixa a certeza de que o mundo pode ser melhor do que é a partir de homens dessa cepa. Abraços.

Gostou? Compartilhe