Quando a primavera se aproxima há o sonoro canto dos pássaros alvoroçados aos novos bons tempos. Assim é, deveria ser mas, nem sempre foi. Em determinada primavera os pássaros não cantaram. Por quê? Porque foram intoxicados pelos pesticidas DDT usados nas lavouras que escoaram para os rios e lagos e contaminaram o plâncton, os peixes e os pássaros. No exame das vísceras dos pássaros mortos, cujos cantos não foram ouvidos, foram identificados os princípios ativos dos herbicidas. Rachel Carson analisou estes acontecimentos e publicou em 1964 a obra Primavera Silenciosa, primeiro livro de cunho ambientalista, ciente das implicações políticas decorrentes e que foi responsável por desencadear movimentos de alerta e proteção ao meio ambiente. Rachel morreu em decorrência de câncer de mama apenas dezoito meses após publicar sua obra. A obra, como deve ser, foi maior que sua pessoa e é atualíssima. Isso faz mais de cinquenta anos e serve a algumas reflexões paralelas.
A Primavera Silenciosa exibe o silêncio das aves como preditor de uma tragédia, no caso uma tragédia ambiental. Nas nossas vidas é necessário acontecer uma tragédia para que acordemos. Não deveria ser assim. Às vezes, o silêncio é ensurdecedor, queima nossos tímpanos, bate em nossas caras, faz a gente franzir o cenho. A primavera silenciosa pode se mostrar quando não beijamos mais nossas mulheres diariamente; a primavera silenciosa se manifesta no desinteresse pelas coisas de nossos filhos, quando não sabemos de seus sonhos e frustrações; também se manifesta quando não temos tempo para os amigos, para tomar chimarrão, chupar laranjas ou simplesmente jogar conversa fora; a primavera silenciosa se impõe quando não apreciamos mais a chuva, o nascer do sol ou o entardecer; também é verificada quando não gostamos mais de crianças, de filmes de comédias românticas ou de ouvir músicas no final da tarde. Também é pelo desinteresse do dia-a-dia.
Ao despegar, para usar um termo comum da rede social, das coisas simples mas, não menos importantes oferecemos uma espécie de pesticida letal para nossas almas. Alma ferida transfere doenças para as vísceras e que combalidas nos levam à morte, morte triste e lenta. Perceba que quase tudo de bom, tudo o que realmente necessitamos é graciosamente oferecido, está aí, na natureza como um espetáculo extraordinário e que se repetirá ano-a-ano até que recebamos o chamado. E se tivéssemos a oportunidade de uma última manifestação é possível que disséssemos que faríamos diferente do que fizemos. Enquanto temos a oportunidade física, mental e espiritual de prevenir as primaveras silenciosas deveríamos usá-la. Oportunidade da correção de rumos, oportunidade de nos entregarmos às delícias do cotidiano e, sobretudo, prestar homenagens e ressonâncias humanas aos que convivem conosco e que nos apreciam apesar de todos os nossos defeitos.