No princípio era o Mito, e o Mito estava com Logos, e o Mito era Logos. Ainda que guarde semelhança, essa não é uma nova tradução apócrifa do evangelho segundo São João 1:1 (No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.) Talvez seja apenas uma boa metáfora para entendermos que ciência e mitologia, ainda que não trilhem o mesmo caminho, estão preocupadas com a mesma coisa: a realidade.
Não, mesmo para um cientista, não faz qualquer sentido reviver a velha dicotomia mito versus logos. Indiscutivelmente, muito antes de qualquer ser humano adotar a razão, com o logos, para transformar o cosmo em objeto do seu domínio, o mito foi o primeiro conhecimento que o homem adquiriu de si mesmo e do seu entorno. Foi construindo mitos que o homem primitivo desenvolveu vínculos práticos com o meio em que vivia, consigo mesmo e com os pares, que lhe permitiram, contra muitas evidencias, ter sobrevivido e chegar até os tempos atuais.
Ninguém ignora que a apreensão da realidade pode se dar tanto pela via da racionalidade quanto pelo caminho da intuição. Ou pela razão e pelo sentimento. E que, em muitos casos, a realidade pode parecer mais plausível pelos enunciados da fantasia do que pelos protocolos da ciência.
A prática científica, adotando o pensamento discursivo, busca, pelas vias da sistematização e classificação, traçar as fronteiras que definem os objetos da sua investigação. A visão mítica, partindo de sentimentos e não de discursos, mostra-se sintética e analítica, ao não admitir o parcelamento do universo. Os mitos, nesse caso, são constructos simbólicos, formados por sentimento e intuição; enquanto que, razão e lógica, são os fundamentos, que, pretensamente, dão sustentação à ciência, para chegar a uma apreensão universal da realidade.
Independentemente de que haja vozes que discordem, o que o conhecimento científico nos faculta é apenas uma interpretação possível das nossas experiências sensíveis. E, ainda que essa seja a intenção da ciência, ao fornecer uma verdade excluir qualquer outra, tem que se ter bem claro que nada no universo pode reclamar uma leitura única. Mais do que o único caminho, a prática cientifica, especialmente quando fundamentada em paradigmas, que são corporativamente aceitos, deveria ser ensinada como tão somente uma concepção, entre muitas, da verdadeira realidade. Nesse caso, não se trata da realidade tomada em sentido absoluto, mas de uma imagem da realidade formatada à luz de um paradigma assumido como verdadeiro. Por isso é que soa (ou deveria soar) descabido, na prática científica, a exigência de que as novas hipóteses, ainda aguardando para serem testadas, estejam de acordo com as velhas teorias aceitas. Ou, que se tenha bem presente, que a verdade, não raro, pode ter pouco a ver com as muitas certezas da ciência. E o que chamamos de ciência pode ser apenas uma ciência entre as muitas ciências possíveis.
Lamento pela desilusão, mas ciência e filosofia, apesar de serem produções eminentemente racionais, não se fundamentam apenas na razão. Ainda que tenha sido a emergência do logos e a dissolução da consciência mítica que separou ciência e filosofia, para um lado, e, religião e arte, para o outro. Isso nos leva ao perigo da entronização da razão e que “ideologias”, pretensamente racionalistas, em nome da “boa ciência”, possam ser usadas para o extermínio de ideias que se contraponham a correntes dominantes de pensamento e de poder.
Há limites para a razão; indiscutivelmente. O êxito da ciência na solução de alguns problemas do passado, como bem frisou Paul Feyerabend em “Contra o método”, não pode ser usado como argumento para tratar, de maneira padronizada, todos os problemas que ainda não foram resolvidos. Os mistérios do universo e as impossibilidades humanas de conhecê-los, por mais incrível que isso possa parecer, reservam espaços privilegiados (e úteis) para o pensamento mítico e suas simbolizações. E assim... “o Mito pode ser o Logos!”
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