Fair-play pode designar honestidade ou gentileza e de qualquer forma reponta à atitude superior de quem abre mão de vantagem obtida ilicitamente. Estava assistindo no You Tube algumas demonstrações dessa prática, a maioria delas na Europa e lembrei de minha infância. Ocorria que quando num lance de futebol alguém cometia falta ele levantava sua mão em autodenúncia. A figura do árbitro fazia-se absolutamente desnecessária. Lembro de um lance da academia palmeirense onde o grande Ademir da Guia deslocou involuntariamente um adversário; parou a jogada, segurou a pelota e com a outra mão e indicou que fizera infração. Era comum, trivial, nossos ídolos faziam isso rotineiramente, restava-nos copiá-los. Certa feita levei uma cotovelada de um amigo que era juvenil da ACAFOL (Associação Cruz Alta de Futebol), entidade extinta. Parei, de pronto e ele, não. Agora, segundo ele, não era mais criança, era malandro, era boleiro, era da vida. Fiquei desencantado, não era a vida que queria, jamais poderia ser malandro; não desse jeito, pelo menos.
Então, por mágica, como se fosse de outro mundo, começamos a admirar o fair-play, atitude de cunho sublime que remete ao caráter; quando essa demonstração acontece o mundo inteiro se comove como se fosse novidade, como se nunca houvera acontecido. No ano passado o atleta são-paulino Rodrigo Caio impediu penalização ao atleta Jô do Corinthians porque este não cometera delito esportivo. Adiante Jô fez um gol com a mão e fez de conta que não sabia. Rodrigo Caio era nós, nós da infância onde fair-play não era nem midiático porque era regra e não exceção; Jô é a gente, personagem verdadeiro de Nelson Rodrigues da vida como ela é. Foi tão impactante um lance de honestidade em real time que presentearam Rodrigo Caio com uma convocação suprimindo o nome de Pedro Geromel. Em outras épocas, Rodrigo Caio seria convidado para ser jurado de Chacrinha ou Sílvio Santos e receberia placa de bronze.
Na medicina acontece algo semelhante. Antigamente o médico não dispunha da parafernália da propedêutica e ele se valia da análise criteriosa (história e exame físico) do paciente. Era considerado ungido e por isso também, respeitado. Hoje, se o médico não solicitar exames e mais exames passa-se a desconfiar dele. Ficamos à mercê de terceirizações. Hoje quem mexe em ventilação mecânica é o fisioterapeuta. Em breve alguém ouvirá o paciente, outro examinará, outro solicitará os exames, outro interpretará, outro vai operar, outro cuidará do pós-operatório e outro terá a sublime missão de conversar com a família. É bem possível que outro apresente a conta. Em outras palavras, nós nos abandonamos, abandonamos a essência da medicina e podemos ser absolutamente substituídos por programa de computador. Sim, a humana figura do médico está com os dias contados. O que tem a ver com fair-play? O midiático médico solicita exames a granel sem que se detenha na essência da profissão: ouvir e não somente escutar, ver e não somente olhar. A falta da honestidade com a profissão faz com que se peça exame caro sem que se examine adequadamente o paciente. Este, por sua vez, colabora com a teatrialização porque exige check-up, o que enriquece quem presta exames. Doutor bom é quem pede muitos exames e receita remédios caros, dizem por aí.
Quando alguém acha uma carteira cheia de grana e devolve ao dono é matéria do Fantástico. Lembra bem Dr Telmo Vieira, houve um tempo em que a palavra honesto era substantivo. Agora, definitivamente, é adjetivo e é para poucos, para os que exercem o chamado fair-play.