Foram raras as ocasiões que encontrei Florindo Luiz Castoldi, professor de Estatística da Faculdade de Agronomia da UPF, sem que ele não estivesse com um livro na mão. E com um livro na mão entenda-se, aqui, como uma mera figura de linguagem, pois, na maioria das vezes, ele estava era lendo mesmo. Posso reportar encontros em corredores dos prédios da Universidade, em antessalas de auditórios ou, até mesmo, em locais tão inusitados como no espaço entre as gôndolas dos supermercados locais. Se há alguém que merece o epiteto de LEITOR, esse alguém é o Professor Florindo Castoldi.
Em outubro passado, houve um encontro casual na Rua Uruguai, quase em frente à entrada da Emergência do Hospital São Vicente de Paulo. Cumprimentos protocolares, seguidos de uma conversação rápida e eis que, logo depois da despedida, o Professor Florindo me chamou e perguntou: “Gilberto, tu conhece Montaigne?” Respondi que o conhecia como o mestre do ensaio, que já li partes da sua obra e que não sabia muito mais do que isso sobre esse autor. E ele prosseguiu, dizendo que comprou os famosos Ensaios de Michel de Montaigne e ficou intrigado com a tradução de um trecho do tópico que o escritor se dirige ao leitor, onde, depois de justificar que ele, Montaigne, é o tema retratado na obra, finalizou com a famosa passagem que tem variado conforme a tradução em língua portuguesa que se leia. Montaigne encerrou o tópico com: “Assim, leitor, sou eu mesmo a matéria deste livro, o que será talvez razão suficiente para que não empregues teus lazeres em assunto tão fútil e de tão mínima importância. E agora, que Deus o proteja, ou, dependendo do tradutor, Portanto, adeus, ou A Deus, portanto. De Montaigne, em primeiro de março de 1580.”
A dificuldade, nesse particular, para o Professor Florindo e para os tradutores de Montaigne, tem residido em decifrar a intenção do autor ao encerrar o tópico, uma vez que, para alguns, ele teria escrito (ou intencionado escrever) “A Dieu donc” e, para outros, “Adieu donc”. No sítio internet brasileiro “Domínio Público” (www.dominiopublico.gov.br) podemos encontrar uma edição de “Les Essais”, supostamente fiel ao original, com “A Dieu donq”, e, no repositório similar da França (www.livrefrance.com), uma edição em que consta “Adieu donc”.
Sérgio Milliet (1898-1966), possivelmente o mais conhecido tradutor dos Ensaios de Michel de Montaigne para a língua portuguesa, com a edição clássica, em 3 volumes, publicada, em 1961, pela Editora Globo, de Porto Alegre, usou o “E agora, que Deus o proteja”, mas, em nota de rodapé, esclarece que a frase, realmente, pode prestar-se a confusão, tendo optado pela interpretação do General Michaut para a expressão “A Dieu donc” como “Sur ce, à la grace de Dieu”, em clara alusão ao destino do livro e não de reverência à divindade.
Outros tradutores, caso de Rosa Freire D’Aguiar, na edição portuguesa publicada pela Companhia das Letras/Clássicos Penguin (2010), têm preferido o “Portanto, adeus”. Mas, há, entre outras opções, edições de 2016, como a tradução de Julia da Rosa Simões, para a LPM, que a opção foi pelo “A Deus, portanto”, além da republicação da tradução de Sérgio Milliet, com revisão técnica e notas de Edson Querubini, um dos principais especialistas em Montaigne no Brasil, pela Editora 34.
O colega Luciano Consoli, que viveu longa temporada na França, como estudante da Universidade de Paris XI, ajudou a desvendar o mistério a partir de consulta aos comentários das provas de literatura do sistema Le BAC (exame de ingresso nas universidades públicas francesas). Sobre esse tópico dos Le Essais, pelos testes do Le BAC, conclui-se que, atualmente, na França, vige a interpretação de que, ao abusar da ironia para captar o interesse do leitor, Montaigne, efetivamente, intencionou usar “Adieu donc”. O nosso, “Portanto, adeus”.
Montaigne, pelo que parece, continua mais atual e discutível do que nunca; desde que começou nos ensinando que “filosofar é aprender a morrer” e acabou por concluir que, de fato, “filosofar é aprender a viver”.