Gustave Flaubert, a quem, entre outros intelectuais de escol, atribui-se a autoria da assertiva “le bon Dieu est dans le détail” (o bom Deus está nos detalhes), jamais imaginou que, travestida na sua contraparte na língua inglesa, a não menos famosa “the Devil is always in the details” (o Diabo está sempre nos detalhes), esta frase, viesse, um dia, a se materializar como uma espécie de maldição no capítulo de introdução de uma Tese de Doutorado em Letras, pela PUCRS, em 1998.
Especificamente, estamos nos referindo ao magistral trabalho “Deus escreve direito por linhas tortas: o romance folhetim dos jornais de Porto Alegre entre 1850 e 1900”, que, sob a orientação da professora Regina Zilberman, foi objeto da Tese de Doutorado em Letras, defendida por Antonio Hohlfeldt, na PUCRS, em 1998. O autor, Antonio Hohlfeldt, o jornalista, o professor, o politico (ex-vereador de Porto Alegre, tendo sido também vice-governador do Rio Grande do Sul, e atual presidente da Fundação Theatro São Pedro), é um intelectual de reconhecidos méritos. A orientadora do trabalho de tese, Regina Zilberman, dispensa comentários. E, quanto aos membros da banca de avaliação, que incluiu gente do naipe do escritor Affonso Romano de Sant´Anna, não cabe qualquer reparo. Mas, não obstante tudo isso, merece nossa reflexão, um detalhe ou o Bom Deus ou, como acho mais provável, o Diabo mesmo, no que diz respeito a esse trabalho, que, inclusive, após aprovado como tese de Doutorado em Letras, foi publicado, em 2003, no formato de livro, pela EDIPUCRS, passando por nova revisão editorial, materializado como o volume 12 da Coleção Memória das Letras.
O preâmbulo do capítulo I, página 27 do livro publicado pela EDIPUCRS, começa com “Ema Bovary, com sua fome de ficção, é um arquétipo e um símbolo da época. [...] Ema Bovary seria, no plano fictício, o exemplo patético...”. E segue o primeiro parágrafo: “Com esta lembrança da personagem de Émile Zola, o ensaísta argentino Jorge B. Rivera abre a análise sobre a importância e a...”. Eis, pelo exposto, o suficiente, para que um leitor minimante atento perceba a presença do Diabo travestido no detalhe da troca de nomes entre Gustave Flaubert e Émile Zola. Nada muito diferente se alguém tivesse escrito “com essa lembrança de Iracema, personagem de Machado de Assis, ou de Capitu, personagem de José de Alencar”. A relevância desse fato não reside na troca dos autores, mas que o óbvio pode passar despercebido por muitos olhos, ainda que esses olhos sejam dotados de inquestionável competência. Não há margem para qualquer dúvida que todos os atores envolvidos sabem que Ema Bovary é personagem de Gustave Flaubert e não de Émile Zola. Tanto sabem que, na página 41, do referido livro, Hohlfeldt faz referência a Madame Bovary como obra de Gustave Flaubert, originalmente editada em formato de folhetim.
O Diabo no detalhe, presente na obra de Antonio Hohlfeldt, em nada diminui o valor da tese e do livro. Pelo contrário, instiga a leitura. Trata-se de um trabalho meticuloso, feito com critério metodológico e muito bem escrito. Em cinco capítulos, Hohlfeldt passa em revista a origem e a trajetória do romance folhetim, desde a Europa até as plagas brasileiras e, em particular, gaúchas. Um tipo de literatura, que foi iniciada na França, em 1836, por Émile de Girardin, que passou a publicar textos de ficção no espaço físico do jornal chamado de “feuilleton”, sendo, logo imitado por seu ex-sócio, Armand Dutacq, e acabou por desencadear uma onda que catapultou as tiragens dos jornais e ajudou sobremaneira na formação de novos leitores. No caso gaúcho, entre muitos romances folhetins publicados na segunda metade do século XIX, Antonio Hohlfeldt escolheu três para uma analise detalhadas: A Filha da Cigana, Paulo Lopes e A Casa do Tio Pedro, cobrindo as décadas 1870, 1880 e 1890.
Realmente deve ser coisa do Diabo essa confusão entre Flaubert (1821-1880) e Zola (1840-1902), pois há quem diga que, na época que eram vivos, havia certa rivalidade entre os dois.