Saudades de Salvador onde há sete anos brindamos bodas de prata. Cayo, meu irmão mais jovem, praticamente baiano, conduziu-nos ao tour: Itapoã, Mercado Modelo, Rio Vermelho, Liberdade, Tororó, Fonte Nova, Pelourinho, Nosso Senhor do Bomfim. Fomos à Gantois, na casa de Mãe Menininha. O marcante, no entanto, foi uma visita ao Jardim da Saudade até avistar uma placa na grama: Raul dos Santos Seixas, falecido em 21/8/89. O maluco beleza que encantou minha geração, a geração adolescente igual a todas que se rendem ao diferente. Raul e Secos & Molhados eram diferentes, eram a contracultura. As criações dele e Paulo Coelho oriundas da arte associada ao momento psicodélico-lisérgico jogavam a mente da gente a um novo aeon. Havia um mundo de discos voadores e muita gente usava óculos escuros ao não disporem de colírio. Ali, no chão, na fria placa azulada, a meus pés, repousava Raul. Confesso que chorei lágrimas de gratidão. Raul era o cara, talvez somente daquela época, talvez da eternidade.
A Sociedade Alternativa foi fundada em 1971 quando Raul e Paulo Coelho passaram a ler sobre discos voadores e sobre a obra do ocultista Aleister Crowley (1876-1947). Aleister, muito doidão, pregava a liberdade total de espaço&tempo&semente&colheita e a busca do milagre, “não de caminhar sobre a água mas, caminhar sobre a terra”, sem lenço e sem documento. A repetição da propaganda da Sociedade Alternativa em todos os shows do então midiático Raul fez com o presidente Ernesto Geisel esmiuçasse para ver do que realmente se tratava, imaginando que se referia a um movimento revolucionário contra o governo. Raul foi preso, torturado e “convidado” a passear nos Estados Unidos, por uns tempos. Prá gente disseram que ele havia ido visitar John Lennon, outro admirador de Aleister, ao ponto de sua estampa figurar na capa do álbum Sergeant Pepper’s. Raul voltou logo, com a permissão do general-presidente porque seu hit Gita bombava demais. Na boa, a ideias da Sociedade eram da liberdade de cada um, não de grupos, não de setores, “faz o que tu queres pois é tudo da lei”.
O Brasil busca uma sociedade alternativa contrapondo a que os bandidos se apoderaram de quase tudo: dos três poderes, das estatais, de parte da imprensa num mecanismo praticamente infalível chamado de “aparelhamento”. A esquerda, sempre na vanguarda, abriga os artistas e intelectuais, uns patrocinados e outros fascinados. É charmoso ser “gauche”, é inebriante ser do contra. Mas, quase tudo pertence a ciclos – infância, adolescência, madurez, senescência – e tudo se explica dentro do subjetivismo-perspectivismo, ou deveria se explicar.
A verdade é que agora com os cabelos brancos, com o cenho e as cicatrizes que a vida dá, fito meus filhos e alunos; seus olhos, ora brilhantes tal qual eram os meus na época de Raul, ora de insegurança marcada pela realidade que se estampa em todas revistas, jornais e mídias sociais e o que se vê e lê? Capitais dominadas pelo narcotráfico, enxames de universidades criando um país de doutores e contraditoriamente escolas abandonadas, ensino fundamental sucateado, medo de andar na rua de noite e de dia, ladroagem solta e recidivante. Acho que devíamos olhar o macro e entender Raul: uma sociedade começa a se estruturar a partir das individualidades, a revolução interior e aí, sem lisérgicos, deixar um país que nossos filhos se orgulhem em habitar.