O cineasta Cacá Diegues é um dos muitos diretores, críticos e pensadores que, no último mês, vêm publicando textos alusivos aos cem anos do nascimento de Ingmar Bergman. Na semana que passou, ele escreveu para o Estado de São Paulo um belo texto onde aborda a melancolia que perpassa toda a filmografia do diretor, resumindo de forma magistral sua obra: enquanto alguns diretores buscam no cinema um elixir para dar vazão aos sonhos de felicidade, para Bergman a mola propulsora de sua obra é o oposto, porque para ele a infelicidade do ser humano é uma condição humana natural.
O diretor não atravessa vias cruzadas à maioria apenas nesse aspecto. Bergman, aliás, é um dos poucos diretores cuja presença na linha do tempo da história do cinema se justifica por si próprio, e não por uma filmografia nacional ou movimento estético. Muitos diretores se encaixam em períodos únicos da história, mas alguns marcam, ao longo de décadas, a sua própria história independente disto. Neo-realismo, Nouvelle Vague, new wave britânica, nouvelle vague tcheca, o novo cinema alemão, o cinema novo brasileiro (aliás, todos tendo a palavra "novo" no título, o que é irônico em termos de resgate histórico do passado). Bergman não faz parte de nenhum movimento - assim como Fellini, por exemplo - e ainda assim, fez o suficiente para (também como Fellini) se transformar em adjetivo.
É a partir do início dos anos 60 que a obra de Bergman atinge um novo patamar, independente do reconhecimento que sua obra já havia tido até o lançamento de "A Fonte da Donzela", de 1960. Durante uma das décadas mais importantes social, histórica e culturalmente no século XX, Bergman lança o equivalente a duas séries temáticas e um dos maiores filmes de todos os tempos. Todos seus filmes espelham, também, a evolução de seus traumas, ideias e fantasmas particulares.
Com "Através do Silêncio" (1961), "Luz de Inverno" (1963) e "O Silêncio" (1963) Bergman extravasou uma de suas maiores angústias: a ausência de sinais divinos. "Deus está silencioso", diz o padre de "Luz de Inverno", dos três filmes o que mais diretamente trata do tema. Chamada de "Trilogia do Silêncio de Deus", é também um ensaio formal e temático a passagens que seriam desenvolvidas ao extremo em "Persona" (1966), talvez sua obra mais difícil, enigmática e idolatrada. Para muitos, é uma trilogia de filmes que poderia até rivalizar com a "Trilogia da Incomunicabilidade" de Antonioni, porque também as pessoas nesses filmes sofrem em silêncio e pelo silêncio entre elas. Após “Persona”, um marco de suas aproximações formais a temas da alma – humana e feminina – se estabelece uma outra série de filmes com aproximações temáticas, focada na maneira como a arte e o artista são relegados a um plano inferior na sociedade contemporânea (da época, mas com uma interpretação ainda muito atual). “A Hora do Lobo” e “Vergonha” tratam da humilhação, resiliência e sobrevivência do artista em um tempo em que a arte é desvalorizada. A partir de “A Paixão de Ana”, e nos anos 70 em diante, Bergman adiciona a cor à constante reconstrução dos mesmos temas, revistos a partir do tempo em que ele vivia e de como se encontrava.
O mais interessante é que Bergman gostava de permitir múltiplas leituras às suas obras. Do trabalho de câmera sempre significativo, com ajuda de profissionais como Sven Nykvist (na metade final da carreira) ou Gunnar Fischer (na metade inicial), o diretor também transformava seus roteiros em uma arena de si próprio. Quando não havia um só personagem que se pudesse apontar como seu alter-ego, percebe-se que a coletividade dos personagens se tornava o próprio diretor (como em “Através do Espelho”, em que os quatro personagens tinham, cada, um aspecto dos medos e aspirações do próprio Bergman). Para Ingmar, bastava um pequeno grupo de atores e um cenário para construir obras que marcaram a história do cinema, porque a grande arena de batalha de seus roteiros não estava propriamente no mundo, mas dentro da alma de cada personagem e espectador. E na alma do diretor.