O modelo convencional de biografias, de pessoas ilustres ou nem tanto, cuja linguagem e expressões usadas dão ares de vidas vividas de maneira preordenada e com cronologias preestabelecidas, nem sempre possibilita o entendimento pleno do biografado. Por isso, no tocante a biografias, o recomendável é sempre a leitura de mais de uma obra, que, inclusive, podem complementar ou divergir, sobre fatos atinentes à vida do biografado. Eu, nesses casos, quando se trata de resolução de conflitos entre versões, ousaria sugerir como sendo necessárias leituras de obras paralelas que, por não envolverem diretamente o biografado, podem lançar luzes sem vieses sobre as questões de interesse ou apontar novos caminhos para o entendimento.
Sobre J. Robert Oppenheimer (1904-1967), os verbetes enciclopédicos convencionais dão conta que estudou física em Harvard, EUA, passou por Cambridge, no Reino Unido, e obteve doutorado na Universidade de Göttingen, na Alemanha, em 1927. Lecionou na Universidade da Califórnia, campus de Berkeley, e no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech). Foi nomeado diretor dos laboratórios governamentais americanos de Los Alamos, Novo México, onde dirigiu o Projeto Manhattan para o desenvolvimento de bombas atômicas. Presidiu a Comissão Nacional de Energia Atômica dos Estados Unidos, entre 1947 e 1952, e atuou como diretor do Instituto de Estudos Avançados de Princeton (1947-1966). Depois Segunda Guerra Mundial passou a lutar pelo controle internacional das armas atômicas, vindo, em 1954, pelas ligações com amigos esquerdistas e opiniões, a ser incluído na lista dos traidores comunistas e obrigado a depor no processo capitaneado pelo senador Joseph Raymond McCarthy, de cujas acusações, por força da opinião pública, acabaria absolvido.
Na monumental entrevista que George Steiner concedeu a Ramin Jahanbegloo, compilada no livro “George Steiner: à luz de si mesmo”, há uma passagem, retratada no capitulo 3, que mostra outro Oppenheimer, que não aparece nos verbetes enciclopédicos mais conhecidos.
Na condição de editorialista da revista The Economist, sucursal de Londres, George Steiner foi enviado aos EUA, em 1956, para entrevistar J. Robert Oppenheimer sobre energia atômica e relações entre EUA e Europa. Foi recebido em Princeton por um Oppenheimer arredio e exacerbando traços virulentos de cinismo, avisando que concederia apenas 5 minutos do seu tempo, devido ao pouco caso que fazia dos jornalistas. Finalizada a entrevista, na forma de perguntas e respostas, Oppenheimer convidou Steiner para almoçar, sem a companhia dele, na Cafeteria da Universidade.
Depois do almoço, o secretario de Oppenheimer conduziu Steiner para um encontro com o professor Harold Cherniss, célebre helenista, que perguntou se ele, efetivamente, estudara grego e se podia lhe ajudar com uma passagem de um manuscrito de Platão em que havia algumas palavras faltando. Enquanto conversavam, Oppenheimer entrou na sala e sentou-se numa posição privilegiada atrás dos interlocutores. E sem se dirigir a eles, exclamou: “O que há de importante na poesia e na filosofia são as partes em branco”. Steiner reagiu, dizendo que essa opinião era de Mallarmé e que denotava arrogância, pois, se verdadeira, para que existiriam os livros? Oppenheimer atacou dizendo que Steiner acabará de colocar uma questão quase inteligente e que estava convencido que os livros eram necessários, pois a Bhagavad Gita era a voz viva de Deus. A discussão continuou até que, na despedida, Oppenheimer perguntou se Steiner era casado e, ao receber como resposta “muito recentemente”, retrucou: “Ah!, sem filhos. Isso vai facilitar o alojamento”. E foi assim que George Steiner foi escolhido como humanista no Instituto de Estudos Avançados de Princeton.
Eis porque desse jogo de gato e rato, que protagonizaram Oppenheimer e Steiner, fica-se com a convicção de que, para alguém que diziam ser possuidor do cérebro mais poderoso da humanidade desde Leibniz, todo mundo era besta.