Com 161 anos, completados na última terça-feira, e uma população de aproximadamente 200 mil habitantes, a região de Passo Fundo, muito antes do primeiro homem branco fixar residência por estas bandas, já havia sido território habitado por indígenas (guaranis e kaingang). Para conhecer um pouco mais desta movimentação, o ON conversou com o arqueólogo do núcleo da pré-história e arqueologia da Universidade de Passo Fundo, Fabrício Vicroski. Segundo ele, o município tem dezenas de sítios arqueológicos comprovando a presença indígena há pelo menos 12 mil anos no Estado e região. Entratanto, ressalta, ainda tem muita pesquisa para ser desenvolvida.
ON- A região de Passo Fundo teve intensa movimentação indígena, muito antes da chegada do homem branco. Com base nos estudo arqueológicos, essa presença é confirmada a partir de que momento?
Fabrício Vicroski - O Rio Grande do Sul foi habitado há cerca de 12 mil anos pelos ancestrais dos atuais indígenas. Na região Norte do estado não foi muito diferente deste período. Eram caçadores-coletores. Pequenos grupos 30 a 40 pessoas que se deslocavam em busca de alimentos. Acabava o recurso, seguiam para outro lugar e depois retornavam, fazendo uma espécie de ciclo. Esses são os primeiros marcos da ocupação. Construíam acampamentos provisórios a céu aberto ou em cavidades naturais existentes nas rochas. Os artefatos eram feitos em pedras e ossos.
ON - Após este primeiros grupos, outros foram se somando a eles?
Fabrício Vicroski - Há cerca de dois mil anos teve um novo marco da ocupação com a chegada de outros grupos. É um novo processo de exploração e povoamento da região. São os ceramistas-horticultores. Eles já produziam seus recipientes de cerâmica, argila. Também eram horticultores. Com uma agricultura incipiente, já cultivavam abóbora, fumo, milho. São os ancestrais dos caingangues e guaranis. Formam duas frentes de colonização os Guaranis e Kangang.
ON - E como foi o caminho percorrido por esses grupos?
Fabrício Vicroski - Os Guaranis saíram há mais ou menos três mil anos da Amazônia. Foram migrando, seguindo o curso dos grandes rios. Com isso, chegaram até a margem do rio Uruguai, na região oeste do estado e foram se espalhando. Vieram pela região e, através do rio Jacuí, acessaram o interior do estado, o centro, até o estuário do Guaíba, em Porto Alegre, e depois o litoral. O rio Jacuí no Rio Grande do Sul é uma rota de imigração.
ON - A chegada dos Kaingang também seguiu esse percurso?
Fabrício Vicroski - Eles chegaram praticamente no mesmo período. São os chamados Jê, ancestrais dos kaingang. Teriam entrado no estado pela região norte/nordeste, pelos Campos de Cima da Serra, por Lages, cruzaram o rio Pelotas e acessaram. São duas frentes, os Guaranis pelo oeste e os kaingang pelo nordeste. A região de Passo Fundo é uma fronteira étnico-cultural, temos um entroncamento na bacia do alto Jacuí. Local de alianças, conflitos e trocas culturais. Os kaingang faziam outro tipo de cerâmica, além de artefatos de pedras e ossos também.
Os guaranis se instalavam às margens dos grandes rios, Jacuí, por exemplo, não nas nascentes. Nas regiões mais altas, próximos das nascentes é o ambiente dos kaingang. Se guiavam pelas matas de araucária. Por isso, essa região de Passo Fundo ficou associada a eles. Na região central do estado, onde não há floresta de araucária, eles não se encontram.
ON - Outro momento marcante foi a redução jesuítica de Santa Teresa do Ygay?
Fabrício Vicroski - A redução aconteceu em 1632, por ser região de fronteira, foi formada por grupos de índios guaranis e Jê. No entanto, em 1637, cinco anos depois, ela foi invadida pelos bandeirantes. Capturaram cerca de quatro mil índios e levaram para vendê-los como escravo em São Paulo. Nessa época, o RS tinha 18 reduções. Até o ano de 1641 foram capturados cerca de 30 mil indígenas. Houve um esvaziamento, não completo porque alguns conseguiram fugir. Permaneceram nas matas do Alto Uruguai resistindo, enfrentando os bandeirantes. Essas investidas dos bandeirantes mexeu com a dinâmica de ocupação indígena no estado. Pelo menos 200 mil índios ficaram desalojados, migrando para outros locais.
ON - O que os estudos arqueológicos já conseguiram catalogar na região de Passo Fundo?
Fabrício Vicroski - Em Passo Fundo tem muita pesquisa para ser desenvolvida. Há muitos sítios arqueológicos. Em Povinho Velho tem vestígios dos ancestrais kaingang, casas subterrâneas. Os índios faziam buracos para se proteger do frio. Há dois anos, fizemos uma pesquisa próximo a Reserva Maragato, Arroio Pinheiro Torto, quem vai para Carazinho. Também há vestígios de sítios, acampamentos, não foi escavado ainda. Encontramos artefatos de pedra lascada. Se consultar o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), tem apenas três sítios catalogados. Mas podemos falar em dezenas deles aqui em Passo Fundo. Nos próximos anos, esses dados serão atualizados e vai aumentar a estatística. Temos uma datação, feita a partir do carbono 14, que comprovou em Povinho Velho, casas subterrâneas de 1,3 mil anos.
ON - Existe uma disputa por áreas de terras na região norte, entre indígenas e agricultores descendentes dos colonizadores. Um processo de demarcação que estava em curso reconheceu as áreas como sendo dos antepassados indígenas. Já os agricultores possuem documentos de compras das mesmas terras. Como o senhor avalia esse conflito?
Fabrício Vicroski - Quando os imigrantes chegaram, podem não ter encontrado índios nas propriedades naquele momento, mas os Jês estavam por aqui. Marcavam as propriedade pelas matas de araucárias. Não tinham local específcio, trabalhavam com uma dinâmica maior de deslocamento. Teve a intevenção do estado, aldeamentos indígenas, demarcação do estado, vendendo terras para os agricultores. Tem a questão de que agricultor é inimigo de índio, ou vice-versa. Na verdade, quem fez toda essa confusão foi o Estado, loteou e vendeu terras indígenas da União. O agricultor pagou por essa terra, vendida pelo Estado. Criou-se um impasse. Entendo que eles deveriam se unir para encontrar uma alternativa. Há um desinteresse dos governantes. Um preconceito com a cultura indígena. Eles não têm a informação do contexto histórico, do que aconteceu antes dos bandeirantes. Tem que chamar os dois lados para discutir. Essa situação fica se arrastando e nada é feito. Um imbróglio jurídico. Como resolver se o Estado vendeu a terra da União. O Estado tem que indenizar, mas não tem recurso. É uma situação bem problemática, não vejo perspectiva a curto prazo.