OPINIÃO

Meu cinema está morrendo...

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A modinha nas redes sociais, nos últimos dias, principalmente entre usuários de redes sociais de filmes, como a Filmow e o Letterboxd, tem sido enumerar a lista dos filmes lançados no ano do nascimento de cada usuário. É sintomático que eu tenha visto mais listas dos anos 70 do que qualquer outra década, mas o tipo de lista que mais costuma ligar meu alerta de cinéfilo tem relação com as famosas listas de “melhores” feitas por críticos e canais de cinema na internet. Nasci nos anos 70, e como muita gente que tem postado sua lista, é fácil perceber que as referências não param nessa década. São críticos que puxam filmes conhecidos e/ou obscuros dos anos 60, 50, 40, 30. Em contrapartida, acho preocupante que profissionais da área que hoje assinam textos em grandes veículos, na casa dos 20 a 25 anos, construam suas referências até os anos 70 e parem por aí. E mais preocupante ainda ver que a gurizada de hoje construa suas referências a partir dos anos 2000 apenas, ou que se esgotem apenas em séries para TV. 

Não é papo de tio velho, saudosismo gratuito. A geração dos anos 70 e 80 construiu sua base cinéfila a partir do que estava disponível na TV. E o que se exibia nas TVs não se restringia apenas ao que se produzia naquele tempo. Durante as tardes, eram exibidos filmes de 30, 40 anos antes. Hoje, a programação da tarde na TV aberta reserva somente filmes “recentes”, independente da qualidade. Qualidade no cinema não tem validade. Ótimos filmes dos anos 80 ou 70 poderiam ser exibidos durante a tarde. Sem contato com esse acervo, é cada vez mais difícil formar um hábito de não reconhecer o que é antigo apenas como “velho e estranho”.

A Netflix, já escrevi aqui, é sintoma disso. Olhei a lista de novos filmes de setembro, e não há um só filme feito há mais de dez anos. A história do cinema está desaparecendo, uma vez que as locadoras estão fechando e os serviços de streaming simplesmente optam por não colocá-los na sua programação. Vi filmes de Adam Sandler receberem nota máxima na Netflix (dar nota aos filmes é outra mania das novas gerações, tudo se categoriza por nota, não por opinião ou argumento) enquanto obras como O Poderoso Chefão, Chinatown ou O Bebê de Rosemary ganham duas ou três estrelinhas. Filme preto e branco, então, nem a pau. É a lógica inversa: quanto mais acesso é possível, quanto mais fácil conseguir proporcionar o contato com essas obras, menos elas chegam ao público. O consumismo de um público volátil, acostumado a começar a ver um filme e a parar na primeira dificuldade para escolher outro dificulta a formação de um público mais crítico e aberto à compreensão de um filme. Na dificuldade do passado, locar e pagar por um filme normalmente fazia as pessoas persistirem nele até o fim. Não havia outras opções. Hoje, um clique num botão tira o público do filme que ele achou “um pouco estranho” já no início e ele zapeia pelas outras 4.000 opções. A falta de insistência não ajuda a superar o estranhamento. O excesso é a mãe da falta de formação crítica.  

Percebo isso quando converso com alunos na universidade e vejo que muitos não reconhecem ou nunca viram obras que dez anos de idade, multipremiadas, faladas, comentadas. Não se trata de falta de interesse, se trata de excesso de ofertas e uma certa comodidade que impede o enfrentamento ao que é estranho.

No ano em que eu nasci, apenas para aderir à modinha, foi lançado “Taxi Driver”, um dos grandes filmes de Scorsese e do próprio cinema, tão sujo e repleto de camadas hoje como já parecia ser em 1976. Brian DePalma adaptava de maneira metafórica e brilhante o romance “Carrie” de Stephen King em um filme que é uma aula de cinema. “Rede de Intrigas” já antecipava, naquela época,o potencial destrutivo do jornalismo sensacionalista e a forma como ele manipula o público. “Rocky” surpreendia o mundo, e se até hoje é xingado por ter tirado o Oscar de Scorsese, ainda consigo ver um filme maravilhoso sobre a superação de dois patéticos derrotados contra o establishment, usando o ringue como uma metáfora visual.  “Todos os homens do presidente”, outra aula de cinema de Alan Pakula, expunha os bastidores da desconstrução do poder americano, que já vinha sendo posto em dúvida na ascenção da Nova Hollywood, construída pelo interesse de um público novo que desconfiava das suas instituições. São apenas algumas das obras feitas naquele ano. Dificilmente algum deles, marcantes para a história do cinema, seriam recebidos com algo além de um nariz torcido por quem acha que o cinema nasceu em 2000.

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