Vez que outra, assaltam-me insights, lembranças misturadas com projeções, saudades ou experiências metafísicas sobre acontecimentos de há 40-50 anos. Vejo claramente a casa 347 da Cel Sampaio (hoje, Travessa Arcildo Leidens), em frente ao cemitério da Vera Cruz. Início dos anos 70, manhãs; das 06-07 horas meu velho ligava na Passo Fundo e ouvia músicas gaúchas; das 07-08 era música caipira de raiz, hoje chamada de sertaneja. O bom, no entanto, era das 10 em diante, músicas de Eliana Pittmann, Clara Nunes, Moacir Franco, Agnaldo Timóteo, Dom e Ravel e Nelson Ned e às 11 vinha o indefectível Hélio Freitag. Minha mãe e eu, na arrumação da casa e preparo do almoço curtíamos tudo. Ao meio-dia, meu velho chegava do quartel e era hora da Rádio Guaíba – “em primeira audição” (quando em 1970 descobri Paulinho da Viola em Foi um Rio que Passou em Minha Vida), o comentário de Sergio Jockymann e o esporte na visão de Ruy e Lauro Quadros. Isso tudo me vem repetidas vezes, a gente tinha pouco - a gente tinha tudo que pode querer da vida.
Outro assalto é de 77-78-79 quando fiquei hospedado no quartel, junto aos sargentos solteiros que ali moravam, na excrecência de um civil habitar regularmente o ambiente militar. Aceito fui, pelo Major Isauro Piaguaçu, em decorrência do valor humano de meu pai e da “pressão” dos colegas de farda dele, amigos e irmãos de alma que guardo com extremo carinho. As imagens são sempre as mesmas: entro e começo a procurar aquele caderno, poderoso instrumento onde estavam anotadas as aulas e dicas preciosas, sem elas tudo estaria perdido; em outras vezes, chego para dormir e minha cama está ocupada por outro cara ou não encontro a chave do quarto ou, ainda, não sou mais desejável ali. Nessa “república” convivi com Daltro Wesp, José Carlos Araújo, Gleno Pereira, Domingão, Mendonça, Ildebrando Malta e Bonorino. Cada qual tinha suas peculiaridades, suas baldas, suas histórias e estórias. Muitos faziam faculdade porque o comando facilitava a vida de quem queria buscar conhecimento. Bonorino vivia na penúria porque tudo o que ganhava dispunha para seus pais, irmã, prestação do velho fusca marrom 1300, faculdade e seus dois luxos: a assinatura da revista Visão (de Henry Maksoud) e da Time, era sua visão de mundo e era como estudava inglês, geralmente a partir das 4 da matina. De todos aprendi um monte e tento reproduzir, fui abraçado e agraciado pelas convivências. Gleno Pereira, por exemplo, tinha um Maverick branco (placa 4409) e gravara uma fita cassete cinteira com apenas uma música – Mississipi, do Pussycat. Deste conjunto eu gostava mais de uma que tinha semelhança com meu nome – Georgie e essa música me joga instantaneamente na Cantina do Gageiro, junto aos meus amigos Eduardo Fernandes e Laureano; era uma época difícil para mim pois havia levado fora de minha primeira namorada. Laureano morava na Vera Cruz, era soldado e bom jogador de futebol; jogava no meio de campo com Farias, Maurílio era lateral, Batista, ponteiro, Kita, centroavante. O sonho secreto dele era, no entanto, tocar na Banda Marcial do Conceição. Então, eu lhe disse: vamos lá, vais tocar comigo. E ele foi e partilhamos sonhos. Fiquei feliz em ajudar a realizar sonhos.
Pediram que eu escrevesse mais sobre a vida do que sobre política e eu humildemente acato e invado os espaços dos leitores com reminiscências. Desculpa aí.