Há um conjunto de normas que define (ou, presume-se,deveria definir) o comportamento dos cientistas. São essas regras que, tacitamente assumidas (na maioria das vezes) ouexpressas em manuaiscorporativos, dão conformação ao “ethos da ciência”. E por “ethos da ciência” entenda-se, na clássica proposição do sociólogo Robert K. Merton, de 1942, como o espírito de corpo que se forma entre os cientistas, criando uma espécie de identidade coletiva que os une e os identifica, e que é capaz de gerar indignação moral, quando contravenções a essas regras são cometidas pelos seus membros.
Robert K. Merton, com as suasnormas, nos deixou um legado valioso para o debate sociológico do processo de geração de conhecimento pela comunidade científica. Não, por mais incrível que possa parecer, as suas normas, na atualidade,ainda que não endossadas universalmente, não podem ser consideradas ultrapassadas e nem destituídas de valor ou sem qualquer influência prática no dia a dia da ciência. São abstrações idealizadas a partir de expectativas sobre o comportamento de uma coletividade. A indignação social que pode ser gerada, dependendo do caso,pela violação de uma dessas normas (que nem sempre se mostram puras no mundo contemporâneo), como veremos, é um bom indicativo do seu valor.
As normas de Merton podem ser resumidas no acrônimo CUDOs, formado pelas iniciais de palavras na língua inglesa. São elas:Comunalismo (Communism); Universalismo (Universalism); Desinteresse (Disinterestedness); e Ceticismo Organizado (Organized skepticism). Em apertada síntese, entenda-se, por Comunalismo, o conhecimento científico como propriedade comum ou bem público; por Universalismo, quando o achado científico tem a primazia sobre a reputação da autoria sem que haja qualquer discriminação de raça, gênero ou nacionalidade, por exemplo; Desinteresse, em que prevalecem as conclusões tiradas a partir das evidências e não pormeio de crenças pessoais ou influências externas, prevalecendo sempre o interesse coletivo e não o individual; eCeticismo Organizado, rememorando que os cientistas devem, sempre, permanecer céticos em relação aos resultados obtidos, evitando-se a tirada de conclusões apressadas e prematuras.Às normas de Merton, inicialmente apenas quatro, acrescentou-se, nos anos 1980, Originalidade, que se constituiu em uma obviedade, em se tratando de ciência.
As normas de Merton, ainda que todas justificáveis, são demasiadamente acadêmicas. E por afirmarem não mais do que apenas ideais de comportamento, que não necessariamente se materializam no dia a dia, facilmente, depreende-se que essas normas são apenas um conjunto de exortações morais, e que, conforme a área do conhecimento, são de difícil materialização integral na vida real. Assim, como contraponto,justifica-se a existência para cada norma de uma contranorma, diametralmente oposta à norma.Então, eis que, para a norma do Comunalismo, surgiu a sua contraparte que é o Isolamento (Solitariness), envolvendo o sigilo do conhecimento, com a justificativa de obtenção de direitos de propriedade intelectual ou garantir a primazia da descoberta; o Universalismo deu origem ao Particularismo (Particularism), em que, inegavelmente, pelo maior número de cientistas e pelas fontes de financiamento, os países ricos dominam a ciência no mundo; o Desinteresse deu vez ao Interesse (Interestedness), justificado pela busca do ineditismo (nem sempre) e a corrida desenfreada porpublicações (Publish or Perish) como base para alavancar carreiras e o acesso a fontes de financiamento ou, até mesmo, envolvendo interesses velados não confessáveis; e, por fim, o Ceticismo Organizado que cede lugar ao Dogmatismo (Dogmatism), quando carreiras cientificas são construídas com base em muitas certezas e pouca dúvidas, a partir de orientações acadêmicas que mais perpetuam tribos do que ensinam a buscar o novo.
Enfim, não ignore, os cientistas lidam, acima de tudo, com prescrições morais.