"Minha obrigação com a música é algo maior", diz Ricardo Pacheco

Na estrada há pelo menos 35 anos, ele leva adiante o ofício da música inspirado em um legião de cantores e instrumentistas

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Neste sábado, ele retorna ao palco do Espaço Rito, onde recentemente comemorou, com muita música, 50 anos de vida, ou 'meio século de fundação do corpinho', como gosta de definir. O show é a terceira edição do projeto Clube do Samba, uma versão ao vivo do programa homônimo, que vai ao ar todos os domingos na Rádio UPF, sob o comando do comunicador Gerson Pont. 

 

Na estrada há pelo menos 35 anos, Ricardo Pacheco leva adiante o ofício da música inspirado em um legião de cantores e instrumentistas, que ele mesmo fez questão de homenagear na canção 'Minha Terra'. Composta recentemente, a letra é uma referência aos músicos de diferentes gerações, nascidos em Passo Fundo ou adotados pela cidade. (Uma espécie de versão local de 'Paratodos' de Chico Buarque).


A lista inclui Alegre Corrêa, Yamandu Costa, Miguel Pereira, Osélio, Caco Véio e Romário, Tio Menaneon, Djanira,Osvaldir e Carlos Magrão, João Castanho e João Saudade, Pedro Neves, Jessé Fontoura, João das Éguas, Canhoto, Maçã, os Quevedos e os Saggiorattos, Tiaraju, Camargo, Victor e Lara, Renascença, Marcelo Pimentel, entre muitos outros.


Quando quer mostrar uma nova canção, Ricardo batuca no próprio peito para marcar o andamento da melodia, enquanto canta. Um gesto que repete várias vezes durante a entrevista de quase três horas, no final da tarde de terça-feira. A conversa acontece no Bar Brasil, esquinas da Independência com Fagundes dos Reis. "Olha o habitat", comenta assim que entra no estabelecimento.


Enquanto desenvolve raciocínios sobre os mais variados assuntos, a música também está presente. Trechos de letras são citados para complementar a fala e dar força às imagens. Quando perguntado sobre os 50 anos, dispara Gonzaguinha. "Acho que esse primeiro meio século me mostra a beleza de ser um eterno aprendiz e me dá a certeza de que devo preservar a pureza e a verdade das respostas das crianças".


Na contramão da maioria dos colegas, Ricardo não canta para agradar ao público. Quem o conhece sabe que não aceita pedidos e sugestões de canções quando está no palco. Canta porque acredita na arte como manifestação humanizadora e transformadora das pessoas. É nessa relação que o artista estabelece seu canal com o público. “Minha obrigação com a música é algo maior. Costumo dizer que aqui você não faz a programação. Em alguns lugares nunca mais voltei a tocar por conta disso”, brinca.


Sem arredar o pé um centímetro de suas convicções artísticas e políticas, estando ou não no palco, o músico que costuma chamar os amigos de 'abençoadinhos', e que sempre tem uma maneira humorada e particular de interpretar os fatos com frases originais, ganhou o mundo muito por conta deste temperamento.


A jornada começou cedo. Aos 15 anos saiu de casa em razão de um desentendimento com o pai (seu Aurélio, falecido em agosto deste ano, e que tantas vezes foi homenageado pelo filho em seus shows). Sem ter para onde ir, aproveitou aproximação do primeiro rodeio de Passo Fundo, no Parque da Roselândia, e montou acampamento no local, mesmo faltando 30 dias para a abertura do evento. Quando o Rodeio terminou, recebeu convite do amigo Cesar Ferreira e partiu para Caxias, para integrar um grupo musical.


A aproximação com a música latino-americana, um dos estilos mais permanentes e marcantes de sua carreira viria na sequência. Era para ser apenas uma rápida passagem pela cidade de Cascavel, no Paraná, mas o show continuou por alguns anos. Foi lá que ele conheceu a mãe de seus dois primeiros filhos. Também integrou um grupo de músicos argentinos, viajou para Bariloche e o nordeste brasileiro, interpretando versões de clássicos argentinos.


A diversidade musical que Pacheco leva em sua bagagem é fruto das andanças. No início dos anos 90, a música no Rio Grande do Sul ainda era fortemente influenciada pelo movimento nativista, iniciado na metade da década anterior. Na primeira viagem à capital, o músico guarda uma lembrança que ilustra o desafio que teria pela frente. "Quando o ônibus passou pelo polo petroquímico e vi aquela fumaceira de noite, fiquei apavorado, achei que estava pegando fogo na cidade", brinca.


Com uma voz que chamava a atenção do público e, levando fortes influências da música regional gaúcha, Pacheco tinha um caminho quase natural para firmar carreira nesse estilo na capital. Chegou a ser o artista responsável pela abertura e encerramento dos shows na Pulperia. Casa noturna considerada o reduto dos principais nomes do nativismo naquele período.


Assim como havia o nativismo, a chamada Música Popular Gaúcha (MPG), também tinha seu espaço e Ricardo queria explorar outros universos rítmicos, melódicos e harmônicos. Ouvindo dicas do amigo e mais tarde parceiro de algumas composições, Caetano Silveira, acabou direcionando seu trabalho para a música Latina e Popular Brasileira.


Das lembranças musicais na Capital, ele guarda uma em especial. Foi quando o ‘filho do coveiro’, como orgulhosamente costuma se autodenominar, em referência à profissão do pai, cantou no Le Club, a principal casa de espetáculos de Porto Alegre nos anos 90. Em Passo Fundo, Ricardo Pacheco bateu ponto em praticamente todos os bares noturnos daquela época. Também fez parte do conjunto de baile Inovação, onde ingressou com a missão de substituir ninguém menos que Victor Cardoso, um dos nomes importantes na música passo-fundense.


Novamente residindo em Passo Fundo, diz sentir falta de mais espaços para a música ao vivo. "A música hoje ocupa outro espaço. Não existe mais bar de música em nossa cidade". Sobre o ofício de seguir no caminho da arte, ele complementa. "Cantei em casamentos de pessoas que se conheceram no bar enquanto eu me apresentava. Faço parte da vida de cada um deles. Vivo minha vida artisticamente. Conheci lugares, pessoas, histórias, que não seriam possíveis em outra profissão".


Sem deixar o espírito crítico de lado, o músico disse ter encontrado a cidade com um novo perfil. "Tem uma onda muito forte de conservadorismo, de homofobia. Ao mesmo tempo, Passo Fundo tem um dos maiores comércio de travestis do Sul do Brasil. São os pais e filhos de quem envolvidos nesse comércio?

Clube do Samba
O show deste sábado, às 20h30min, no Espaço Rito, terá apresentação de Ipácio Carolino e participações de convidados. O ingresso custa R$ 15.

 

Bastidores
Show de despedida
No início dos anos 90, entusiasmados com a musicalidade e o carisma do cantor, que costumava lotar os bares de Passo Fundo, dois amigos, com viagem marcada para Itália, convenceram Ricardo a tentar uma carreira na Europa. Inclusive, se prontificaram em pagar as passagens. Como precisava de dinheiro para bancar as demais despesas, a alternativa foi realizar um show. O público lotou o prédio da antiga Cacimba, na avenida Brasil, Petrópolis. Teve discurso de despedida. Participação de amigos artistas do teatro e da dança e também do cantor Wilson Paim. Só não teve a viagem para a Europa. "Eu completamente brasileiro. Aquele mundo cheio de regras. Pensei melhor e resolvi ficar".

 

Do Le Club para Herval
Assim que encerrou o show histórico no Le Club, Ricardo e os músicos receberam o convite do então prefeito de Herval, Marco Aurélio Gonçalves da Silva (falecido recentemente) para fazer parte das festividades da semana do município. A programação previa cinco noites de shows. "Quando chegamos na cidade, o carro de som estava divulgando os artistas. Na terça era Nei Lisboa e Maria Luíza Benitez. Na quarta, o locutor dizia assim. "A guitarra extraordinária de Lúcio Yanel e ele". Os músicos me olharam e perguntaram que era 'ele'. No caso eu. O prefeito gostou tanto da nossa apresentação que subiu no palco e anunciou que estávamos contratado para encerrar a noite de domingo, que tinha nada menos que a OSPA e Taiguara. Olha a loucura do cara (...risos). Durante o show, o Taiguara começou a falar que Brizola havia abandonado o poeta Mário Quintana em Porto Alegre, que não ajudava o poeta. O público se revoltou. Começou a vaiar e a jogar objetos nele. Entramos às 4h da madrugada no meio do furor ( risos). Havia um público de seis mil pessoas esperando nosso show. Em razão da briga, não cumpriram o contrato com o Taiguara. Ele teve de voltar conosco, em um ônibus, um latão, comendo poeira no banco da frente".

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