OPINIÃO

O homem, a Lua e seus demônios

Por
· 3 min de leitura
Você prefere ouvir essa matéria?
A- A+

Assisti na semana que passou "O Primeiro Homem", filme de Damien Chazelle (Whiplash, La La Land) que foi solenemente ignorado no Globo de Ouro, assim como está sendo posto de lado na corrida do Oscar, e que narra a trajetória do astronauta Neil Armostrong desde a seleção ao programa Gemini até seu histórico pouso na Lua. Não lembro se sequer chegou a ser exibido em Passo Fundo, no mês em que estrearam Venom, Nasce uma Estrela e a nova versão de Halloween. É um filme que impressiona por rejeitar o ufanismo e o heroísmo tão comuns a histórias como essa, em que tudo está pronto para deixar o espírito norte-americano triunfante sobre qualquer adversidade. Afinal, é a história da conquista da Lua pela NASA. Ledo engano. É a história de um homem, e por mais que Neil Armostrong seja um personagem da história da humanidade, não está nos feitos dele o interesse de Chazelle, mas sim no que o movia e em quais eram seus demônios - tanto que passagens prontas para esse tipo de filme, como a imagem da bandeira americana na Lua ou o retorno climático à Terra simplesmente não são vistos no filme. 

O que mais me impressonou foi a construção dramática em torno da fragilidade humana e do trauma, uma linha de narração que se torna o centro da obra, uma necessidade para uma história que todos sabem o final - talvez o grande problema dos filmes biográficos. É saliente como esse tema se repete tanto na forma como a morte cerca o protagonista e o afasta dos seus, como nos momentos em que a fragilidade da própria estrutura que o cerca é recortada na montagem kuleshoviana do rosto de Ryan Gosling, seu intérprete, e das peças que compõem qualquer uma das estruturas em que ele acaba adentrando. Chazelle deixa claro o quanto a iminência da morte - que sempre parece cercar o personagem e fragiliza a relação dele com a própria família - o perturba.

É um filme que se divide em dois momentos, mas ligados por uma bem construída linha dramática em torno do seu protagonista. Gosto mais da primeira parte e da forma como, à la Terence Mallick, se constrói uma aproximação lírica e poética em torno da tristeza e da nostalgia, principalmente na sub-trama envolvendo sua filha. Chazelle reforça essa ligação sentimental ao nos dotar de uma subjetividade expressiva em momentos-chave, nos oferecendo apenas o ponto de vista do protagonista, inclusive nos afastando de todas as outras pessoas - do controle da missão, da família, da esposa - na parte final. Há algumas soluções tortas que tentam incutir algum tipo de suspense barato no público, como a leitura da carta derrotista em caso de uma tragédia, o tipo de artifício que poderia passar longe de um roteiro biográfico. As sequências no espaço são muito boas - sobra até uma pequena alusão a "2001" de Kubrick, no uso de uma valsa em uma sequência no espaço. Aliás, fora a dispensável semelhança com a trilha de LaLaLand naquela sequência final, gosto bastante da forma como a trilha se afasta dos tradicionais temas ufanistas e de suspense para oferecer um comentário mais humano para a trajetória de Neil.

Gosto mais, é verdade, do comentário irônico oferecido por Kauffman em "Os Eleitos", de 1983, cortesia do tom original do livro de Tom Wolfe. Lá havia um recorte do macro para o micro. Do comentário social para o drama pessoal em momentos alternados e em diferentes personagens. Aqui, partimos do micro para o macro, do drama pessoal para a percepção de um cenário maior, mas nunca excessivamente amplo, apesar de às vezes o roteiro querer arranhar esse recorte histórico, mas de forma tão superficial que parece expor uma indefinição quanto à esse aspecto. Acaba não funcionando, nunca indo além da superfície. O que funciona, aqui, é o drama central, o núcleo fragilizado do protagonista, e esse núcleo, no mais das vezes, é formado por seus demônios e as portas estreitas através das quais, vez por outra, sua esposa consegue se aproximar. Belíssimo filme, composto de belas e representativas imagens, tendo o homem sempre como elemento centralizador do olhar, mas com algo a dizer no seu entorno, porém com uma abordagem pouco afeita ao grande público, sedento por momentos climáticos rápidos e passageiros.

Gostou? Compartilhe