Alberi Miguel Steffler, de 74 anos, usa uma espátula improvisada de raquete para espantar as moscas que pousam no curativo da perna. Ele tem, no pé esquerdo, uma ferida que não cicatriza há mais de 20 anos. Nos dois últimos apresentou piora no quadro clínico. Steffler e a esposa dão vida a uma situação rotineira na saúde pública do município: a alta demanda por procedimentos médicos e a falta de um sistema centralizado que forneça informações dos pacientes. O caso de Steffler é a síntese do reflexo da crise vivida pela saúde no Rio Grande do Sul. O caminho começa na União (Ministério da Saúde) passa pelo Estado (secretaria estadual da saúde) que repassa ao município onde as demandas existem e são reais. O Estado tem responsabilidade de investir 12% do seu orçamento em saúde. Segundo dados de 2017, o governo gaúcho não ultrapassou 5,5% deste índice. Recebendo menos recursos, o município se vê obrigado a ampliar o próprio índice, mesmo não sendo de sua competência. Foi o que aconteceu em Passo Fundo em 2017: aplicou 19% do orçamento em saúde, quanto o índice constitucional é de 15%.
Mesmo assim, tem enfrentado dificuldades no atendimento à população. E uma delas, segundo o presidente do Conselho Municipal da Saúde, Neri Gomes, ocorre na marcação de exames. Há 15 anos, o Estado não repactua com os municípios gaúchos a atualização do número de exames que cada um pode fazer para atender a demanda. Na prática o que ocorre é que Passo Fundo está com o mesmo número de exames para uma população de 15 anos atrás. Por isso, a cota de autorizações tem se esgotado em um único dia do mês. No ano passado, o governo ficou devendo ao município R$ 6 milhões referentes aos atendimentos realizados. Recurso que integra os R$ 200 milhões devidos aos municípios e hospitais.
Na prática, o sofrimento maior é de quem está à espera de um procedimento. “É como se alguma coisa corroesse, estivesse se mexendo”, descreve o idoso. Às vezes, a dor o impede de dormir. Enquanto o telefone não toca, o jeito é manter os cuidados para evitar que a situação piore. A esposa Serenita alerta, aos gritos, “olha a mosca Alberi, tem que cuidar”. O que em um primeiro momento parece umamaneira grosseira de falar pode ser também interpretado como um ato de cuidado de quem repete os mesmos procedimentos dia após dia. Toda manhã ela acompanha o marido até o Cais Petrópolis, onde o curativo é trocado. À noite, quem faz a limpeza e substitui as ataduras é a própria mulher. E a preocupação também tem outro sentido: o marido já esteve internado para a retirada de parasitas da ferida.
“Tem que fazer toda noite, porque sai muita água da ferida. Uma água amarelada”, explica. O diagnóstico não é preciso. Serenita fala em um quadro de úlcera venosa, mas os dois estão à espera de dois exames solicitados pelos médicos que tratam o idoso. Um deles foi encaminhado em fevereiro e o outro em julho do ano passado. Ainda não receberam a ligação para realizar o exame.
Há outras imprecisões. Eles não têm muitas informações sobre a situação do tratamento de Steffler junto à pasta de Saúde do Município e não sabem informar quando os exames serão feitos ou quando ele retornará ao consultório médico, por exemplo.
No dia 31 de janeiro, Serenita se deslocou até uma unidade do bairro Santa Marta, onde recebeu um papel e a notícia de que deveria retornar lá no dia 15 de fevereiro, às 9h. Não sabe ao certo para que. “Tive que ir lá sozinha, gastei passagem. Não pude nem ir junto com ele trocar o curativo”, queixa-se. A esperança é que seja a data para realizar o exame.
Dependem disso para poder retornar ao consultório médico. Em julho do ano passado, alguns meses após terem solicitado o exame, algum inseto depositou ovos na ferida. O casal não sabe como aconteceu. A esposa percebeu que havia “bichos” se movendo no tornozelo do homem quando foi fazer a higienização de rotina. Naquela noite, tirou mais de 30 parasitas.
A muito custo, conseguiu levar o marido para o Hospital da Cidade, que apesar de reclamar da dor, não queria ir. Lá, foi submetido à cirurgia. A ideia da equipe médica era amputar o pé e parte da perna. Uma reação hemorrágica interrompeu os planos. “Aquela vez tive até que ir atrás de doação de sangue com meus afilhados”, relembra.
Sem poder ter filhos, por necessitar de um tratamento no útero, cujo qual também não conseguiu realizar por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), há alguns anos,quando Serenita se aperta nas diversas tarefas que envolvem o problema de saúde de Alberi,recorre aos afilhados. Recentemente, os dois recorrem, ainda, a outra pessoa: Neri Gomes, o presidente do Conselho Municipal de Saúde. Ele acompanha o caso desde setembro do ano passado, quando a família não tinha mais o remédio e não conseguia insumos para trocar os curativos.
Por intermédio do Conselho, Gomes conseguiu garantir os remédios com a Secretaria de Saúde até dezembro. Agora, a garantia é incerta novamente. A família vive com um salário mínimo, que vem da aposentadoria de Alberi. O idoso toma pelo menos dois remédios para a dor, o que gera um custo de mais de R$ 100 mensais. O valor é expressivo na renda da família e faz falta no orçamento de outros itens essenciais.
Sem exames agendados
Sobre a situação de Steffler, a secretária de Saúde, Carla Gonçalves, informou que não há exames agendados pelo Cais. Mas que tem um atendimento marcado para dia 15 de fevereiro, no Centro Especializado em Reabilitação II – Físico e Visual, no bairro Santa Marta. O procedimento é para o tratamento da ferida.
Prontuário interligado
Questionada sobre quais são os índices efetivos de exames que não são realizados por ausência de pacientes e também os dados relativos aos pacientes que não vão buscar os exames depois de prontos, a secretária informou que o levantamento com informações está sendo elaborado.Porém, afirmou que hoje há uma grande demanda por esses procedimentos, entre outros fatores, porque não há um sistema unificado que forneça todas as informações do paciente. Isso faz com que um paciente que tem um exame solicitado por um médico possa ter outros requerimentos de exames semelhantes solicitados por outros médicos do SUS. Para agilizar o atendimento, a Secretaria da Saúde quer implementar, até o fim do ano, um prontuário eletrônico interligado.
De acordo com Carla, com esse sistema, qualquer profissional da rede teria acesso aos dados do paciente e evitaria que um mesmo exame fosse solicitado duas vezes por dois médicos diferentes. A ideia está em desenvolvimento e depende de levantamentos de informações sobre as funcionalidades do software que deve ser comprado e de como será adquirido.
Desinformação
A história de Steffler revela outro cenário além de grandes demandas e uma crise na saúde pública. A falta de informações traz duras consequências, como a espera de uma ligação para agendar o exame que nunca chegará. Carla informou que funcionários da pasta ligaram para o idoso, mas ninguém atendia no número que constava no prontuário. Serenita disse, depois disso, que o um dos telefones que ela tinha estragou e ela trocou de número. Na manhã de sexta (8), ela foi até o ambulatório de especialidades, no antigo Quartel, para atualizar o cadastro.
Ausência em consultas
Na última semana, a prefeitura divulgou um dado que preocupa: Em 2018, mais de 30% das consultas agendadas não foram realizadas porque os pacientes não compareceram. Ao total, foram ofertadas 189,3 mil consultas entre as áreas de responsabilidade do município e o convênio da Prefeitura com o ambulatório da UPF para cobrir as demais especialidades. Do montante, foram realizadas 128,2 mil consultas. A Secretaria não tem informações sobre as possíveis causas das ausências em relação às consultas médicas.
Consumo de remédios
Além da situação com os exames e consultas, o Município também notou um aumento na demanda por remédios. Em quatro anos, o consumo de medicamentos mais do que dobrou no SUS de Passo Fundo. No fim de 2017, ON noticiou um levantamento que apontava um acréscimo superior a 120% no consumo de alguns fármacos distribuídos pelo município. Duas razões foram apontadas na época, foram a crise econômica e o aumento no consumo de remédios.