Se você acha que o mito da Terra plana é uma criação que remonta aos tempos antigos ou, na melhor das hipóteses, foi cunhado no medievo da história da humanidade, vou pedir licença para, sem nenhuma intenção de lhe ofender, lançar mão do famoso bordão do Rogerinho do Ingá, personagem do canal do YouTube Choque de Cultura, e bradar: achou errado, otário! E merece ser chamado de otário não por desconhecer quando esse mito foi criado, mas sim por sequer ter considerado a possibilidade de que gente como Aristóteles (384 a.C - 322 a.C) ou Eratóstenes (276 a.C - 194 a.C), os grandes pensadores desse tema na antiguidade, o Venerável Bede (673 - 735), Roger Bacon (1120 - 1192) ou Tomás de Aquino (1225 - 1274), a nata da intelectualidade medieval, nunca ignoraram a esfericidade do planeta Terra.
O mito da Terra plana ou achatada, que, depois de um tempo no ostracismo, voltou à moda pelas redes sociais e parece ganhar novos adeptos a cada dia que passa, por mais incrível que pareça, é uma criação relativamente recente para os nossos padrões de contagem do tempo. Stephen Jay Gould, o laureado paleontologista de Harvard, no instigante ensaio “O nascimento tardio de uma Terra plana”, nos ajuda a entender quando, como, com qual motivação e por quem essa notável peça de ficção um dia foi criada e, mais ainda, nos leva a perceber porque, sem muito esforço e com o mínimo de racionalidade, deveríamos, com veemência, refutar essa ideia.
Há mais lenda do que história, sobre a criação desse mito da Terra plana. E se não é um legado nem dos tempos antigos e nem da Idade das Trevas/Idade Média, então quando surgiu e por que se popularizou? A esfericidade da Terra fazia parte da cosmologia de Aristóteles e foi pressuposta por Eratóstenes quando estimou a circunferência da Terra no século III a.C.. Tampouco se observou, nos escritos dos racionalistas anticlericais do século XVIII, qualquer acusação à crença dos escolásticos numa Terra plana. Esses, a partir de Aristóteles e seus comentadores árabes, sempre afirmaram a redondeza da Terra. Mas, sim, houve personagens menores, como Lactantius (245-325) e Cosmas Indicopleustes (século VI), que defenderam a metáfora bíblica da Terra como um chão plano para dar sustentação ao arco retangular e abobadado dos céus no alto (a partir de Isaías, 40:22). Também é lendária a passagem, muito citada, sobre Colombo, que, para convencer os clérigos eruditos, em Salamanca, teria dito que iria chegar à Índia sem despencar da borda da Terra. Colombo não conseguiria chegar à Índia no tempo que estabelecera, não porque os clérigos duvidavam da redondeza da Terra, mas porque subestimara, propositalmente, o diâmetro da Terra. Isso posto, não resta dúvida que o chamado consenso, seja antigo ou medieval, sobre uma Terra plana é mito. Terra plana é uma fábula do século XIX.
Stephen Jay Gould, após exaustiva pesquisa na literatura, constatou, que menções a uma Terra plana, são raras antes de 1860, mas que se tornam abundantes depois de 1890, chegando, ora com mais e ora com menos fervor, até os nossos dias. E surgiu, sob os auspícios do conservadorismo religioso, a partir do conflito que se conflagrou na batalha da evolução, tendo a versão secular da seleção natural de Darwin, de um lado, e, o criacionismo, do outro. Enfim, Terra plana é apenas mais um mito criado para dar sustentação a uma falsa guerra entre ciência e religião. Irracionalidade e dogmatismo nunca foram aliados da ciência, mas tampouco podem ser considerados que são amigos da religião.
Se, depois do exposto, você ainda acreditar que a Terra é plana e que a teoria que prega a esfericidade do nosso planeta não passa de uma ideologia marxista ou de uma conspiração da Nasa e da mídia esquerdista, só nos resta dar razão ao guru da moda no Brasil, Olavo de Carvalho, e dizer que o seu é mais um caso típico de analfabetismo funcional: você saber ler, mas não entende o que lê! Ou, se preferir algo mais brando, apenas sequelas deixadas pelo efeito retardado do consumo excessivo de maconha ou outros alucinógenos.