No andar debaixo das celas que abrigam 243 internos do regime semi-aberto do Instituto Penal de Passo Fundo (IPPF), João*e Marcelo* cortavam garrafas pets na manhã de quinta-feira (28), enquanto uma porção de potes de margarina dava forma aos sabões produzidos a partir do óleo de cozinha do Instituto. João, um homem de tamanho médio, careca e de 36 anos, pegava as garrafas e as metia em uma máquina que cortava linearmente o fundo. Depois as encaixava em outra que transformava o plástico em linha, enrolando-a a um grande carretel.
“O que sobra vai para a reciclagem”, disse, referindo-se ao gargalo e fundo da garrafa que arremessava em uma sacola no chão. Em um canto se via o resultado do esforço: diversas vassouras feitas a partir de garrafas pets e outros tantos cabos esperando para ser encaixados em novas produções.
Todo o processo faz parte da produção de vassouras sustentáveis que há um ano acontece no espaço e ajuda no processo de ressocialização dos presos em regime semiaberto. “A gente ocupa a mente em vez de ficar pensando bobagem. É uma atividade que acho muito boa”, apontou João, que não parava de mexer nos materiais.
Ele, que já cumpriu três anos e um mês no regime fechado e mais um ano no semiaberto, vislumbra o mês de setembro desse ano, quando, acredita, deve deixar o Instituto. Dos tempos do regime fechado, recorda-se das pequenas celas em que dormir era um desafio e de como buscava fazer artesanato lá dentro para driblar o tempo ocioso.
João não quis contar sobre o motivo que o levou ao cárcere. “Eu nem quero pensar nisso, sabe?”, mudou de assunto. “Porque não importa mais. Eu só quero pensar em sair daqui. Eu to pagando meu erro, mas vou levantar a cabeça.”
Como que em defesa de si por estar no Instituto e sem ter sido questionado, disse que tinha 16 anos de carteira assinada, que a família não o abandonou ali e que sonha em criar a própria empresa quando deixar o presídio. Ele olha para as máquinas que o auxilia a produzir vassouras e compara: “Pode até ser assim. Acho que não vou produzir vassouras, mas com máquinas assim poso fazer algo.”
O sonho nasce na medida em que oportunidades são estendidas dentro do próprio regime. João não tinha nem o Ensino Médio completo quando chegou ali, há quatro anos. Hoje, com formação e experiências aprendidas no próprio semiaberto, repetiu mais de uma vez a ânsia que sentes para a chegada de setembro. Marcelo, ao lado de João na produção, também. Contou que sai no próximo mês. Mas diferente de João, Marcelo disse que cumpre uma pena que não é dele.
Há dois anos dava uma carona a um rapaz até Carazinho e, no meio do caminho, uma abordagem policial encontrou pedras de crack com o homem a quem dava carona. “Ele tava com porcaria. E como que eu ia provar que não era minha?”
Foram oito meses dentro do regime fechado, aguardando julgamento, para então ser transferido ao semiaberto. “Eu tinha um lava-jato. Tinha sete funcionários! Vou ter que começar de novo”, desabafou.
A parte mais difícil foi lidar com a família. Por ter sido julgado e condenado, mesmo dizendo não ter parte na droga encontrada com ele, disse que a conversa com os familiares não foi fácil. O acusaram. Julgaram. O que o abalou sentimentalmente. “A gente não pode caguetar”, definiu, referindo-se ao homem que estava com ele. “Mas até minha mulher duvidou na época. E eu sustentava toda a família. Meus sete funcionários. Só que agora é recomeçar.”
Uma ideia sustentável
O projeto que João e Marcelo executavam na quinta-feira, e encabeçado pelo presidente do Conselho da Comunidade do Sistema Penitenciário (CCSP), Vinicius Francisco Toazza, surgiu ainda em 2016, quando foram identificadas diversas garrafas pets poluindo celas. Muitas eram descartadas de forma irregular nos escoamentos, o que causava transtornos ao espaço, além de poluir a área.
Os apenados já produziam sabão a partir do óleo de cozinha usado – o que ajudava na limpeza do espaço e das roupas dos detentos. Mas para Toazza, que há cinco anos está no Conselho e tem uma sala dentro do próprio Instituto, era preciso unir esforços para que outras atividades fossem desenvolvidas para resolver o problema do descarte irregular e para coibir a ociosidade na unidade.
Ele encontrou em pesquisas uma iniciativa na região Nordeste do país que transformava garrafas pets em vassouras. Inspirado nela é que elaborou um projeto e, com apoio do diretor do Instituto, Luiz Antônio da Silva Alves, levou à Secretaria do Meio Ambiente.
Sem receber apoio na época, Toazza desanimou e só desengavetou o projeto novamente no ano passado. “O Ministério Público do Trabalho (MPT) apresentou a proposta de que poderíamos capitalizar o recurso para aquisição das máquinas e oferecer o curso para os apenados a partir de um projeto que tivesse vinculação com trabalho. Refizemos então nossa ideia e selecionamos cinco apenados para começar. O curso foi em maio passado e em junho já começaram as produções”, lembra-se Toazza, que também é mestre em Direito e professor da Universidade de Passo Fundo (UPF).
João participou da primeira turma do curso e hoje passa adiante as informações para os novos. Para produzir cada vassoura são necessárias, pelo menos, 20 garrafas pet de dois litros. E por dia em que se dedicam à produção são confeccionadas cerca de 10 vassouras.
Logo que o projeto começou a matéria-prima vinha de ambas as casas prisionais – do Presídio Regional de Passo Fundo (PRPF) e do Instituto Penal, que são divididos por um muro. Mas de uma forma que nem Toazza sabe explicar, as garrafas começaram a faltar.
“Nesse momento tivemos a ajuda de uma juíza que começou uma campanha na escola do filho. Ali foram arrecadadas garrafas o suficiente para termos em estoque. Depois ainda pudemos fazer um trabalho de conscientização junto com as crianças”, contou Toazza. Hoje o Instituto conta com locais de coleta para que a produção não cesse.
O próprio Instituto é um ponto de coleta que ainda aceita a doação da comunidade.
“Se você trata um gato como um gato, ele será um gato. Mas se você tratar um gato como um tigre, ele será um tigre"
A iniciativa desenvolvida no Instituto relembra outra que já existiu no sistema fechado, quando os apenados produziam bolas e cuias. Embora a produção de vassouras auxilie os detentos e permita que elas sejam comercializadas (cada vassoura é vendida a R$ 10 na feira da Gare, sendo que R$ 5 ficam para o projeto e R$ 5 para o próprio apenado), ela não consegue incluir todas as pessoas do regime semiaberto.
Diretor do Instituto, Luiz Antônio da Silva Alves, que tem uma visão humanizada sobre o tratamento aos apenados, não esconde a preocupação para dentro dos muros diante da ressocialização dos detentos. Ele reconhece os benefícios do projeto, mas pondera: “Não são para todos”.
Isso porque apenas cinco detentos participam da produção de vassouras, diante de um quadro em que chegam a quase 500 os apenados em regime semiaberto. Desses, Alves discrimina, 260 estão recolhidos na casa, 100 monitorados por tornozeleiras e 100 em regime aberto domiciliar – muitas vezes nessa condição pela falta de espaço na unidade. “Mas nossa capacidade é 140”, aponta.
Como no regime semi-aberto o objetivo é que o apenado encontre um trabalho e retorne para dormir no espaço, o Instituto se converteu em uma casa para muitos deles, que não conseguem emprego na cidade e se vêem obrigados a permanecer no cárcere.
Na visão de Alves isso foge do objetivo do próprio regime, que, dando muros, grades e cercas elétricas para alguém que deveria acessar a liberdade e recomeçar, a reincidência pode ser um caminho a ser escolhido. “Se você trata um gato como um gato, ele será um gato. Mas se você tratar um gato como um tigre, ele será um tigre. E isso acontece aqui. Quando você prende alguém por um crime como roubar um chinelo, por exemplo, e ele não consegue mais ter o acesso a liberdade, logo ele se verá como um ‘bandido’ também. Pois está em um local de bandido. Então quando ele sair ele agirá assim”, metaforiza.
Diante desse impasse é que Alves defende maior uso de tornozeleiras, com manutenção do sistema carcerário e investimentos.
O diretor denuncia situações em que haviam dois agentes prisionais para 250 apenados. Falta de insumos e outros repasses de ordem necessária para a garantia dos direitos humanos do local. Para ele, a tornozeleira sanaria esse tipo de entrave e, se com seu uso ainda assim houvesse reincidência de crime, que então fossem aplicadas outras medidas. “O sistema semiaberto é para autodisciplinar os presos. Então nada melhor que ele poder estar com a família. Recomeçar livre, porém com a vigilância de que se ele sair da linha nesse período, as consequências serão outras.”
A chefe de Segurança Bruna Borba endossa a opinião de Alves. Ela já foi agente da Brigada Militar (BM) e aponta como seu ponto de vista mudou a partir do momento que passou a trabalhar dentro dos muros.
De acordo com ela, que não tece críticas à corporação, mas cita as diferenças, do outro lado se tem a ideia de que é necessário prender e retirar da sociedade. “Só que ele passará muito pouco tempo aqui. Então deveria se apoiar o serviço interno”, pondera, sendo emendada por Alves. “A cidade cria o problema, mas depois não quer resolver o problema. Nós estamos dentro de Passo Fundo, então deveria ser pensado. Acho que deve ser investido em educação, só que diante da nossa atual situação também se deve pensar em criar presídios.”
Oportunidades além-muro e atividades como as das vassouras também deveriam ser ofertadas com maior frequência. O Instituto possui parceria com uma empresa, para onde são destinados alguns apenados. “Mas também são poucos”, apontou Alves, que sonha com que todos os presos tenham oportunidades como João e Marcelo que sonham em deixar a unidade para realmente recomeçar.
*Nome fictício para não expor os apenados