"Dá um nó na garganta", diz Paulo Dutra

Dutra comenta sobre a decisão da AOFFERS de abandonar a organização do Festival Internacional de Folclore

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É difícil falar no Festival Internacional de Folclore sem pensar na figura de Paulo Dutra. Presidente e fundador da Associação de Organizações de Festivais Folclóricos do Rio Grande do Sul (AOFFERS), era ele quem organizava o evento desde 1992. Verbos conjugados assim, no passado, porque a figura de um Paulo Dutra completamente entregue à comissão do festival, sempre em passos apressados para garantir que tudo saia como esperado, pode dar lugar ao papel de mero espectador. Isto porque, na última semana, a AOFFERS declarou que não se candidatará como organizadora do festival em 2020.

 

A decisão foi tomada depois que, na última edição, a associação não conseguiu captar pela Lei de Incentivo a Cultura (Lei Rouanet) o total de recursos esperados para contemplar os gastos do festival. Assim, voluntários precisaram tirar de recursos próprios o montante de R$ 147 mil a fim de cobrir todos os custos e não acumular dívidas. Agora, caso a Prefeitura de Passo Fundo decida dar continuidade ao Festival de Folclore, precisará abrir um edital de chamamento para outras entidades interessadas em assumir a organização. O clima é de incertezas e de certa comoção. Afinal, há 26 anos, era Paulo Dutra quem vinha dando o tom ao festival considerado como o melhor do mundo em 2018. A escolha foi feita no Congresso Mundial da FIDAF – Federação Internacional de Festivais de Dança, em Seul na Coreia do Sul.

 

Festival em outras mãos
Sobre a despedida do cargo que vinha assumindo há mais de duas décadas, liderando as 29 comissões e 160 voluntários responsáveis pela organização do Festival Internacional de Folclore, Paulo Dutra fala pouco e mal deixa escapar comentários sobre a visão pessoal de uma decisão tão recente. Prefere falar em nome da AOFFERS. Provocado pela reportagem a comentar se aguentará ver tudo acontecer de longe, da plateia, caso o evento tenha continuidade, ele admite ainda não ter noção de como as coisas irão se desenrolar daqui para frente. “Não sei como será meu envolvimento, tudo depende de como vai ser, é muito incerto. A gente não sabe como vai ser o procedimento do Município”, comenta.


O clima de apreensão que ronda o assunto é fácil de ser entendido. Dutra tem uma longa trajetória de dedicação à cultura, em quase três décadas de envolvimento com o festival. Embora tenha trabalhado como contador na Prefeitura Municipal durante a maior parte da vida, até se aposentar recentemente, as manifestações culturais sempre ganharam um espaço importante na vida do passo-fundense. “É uma vida dedicada a isso, então de vez em quando dá um nó na garganta”, deixa escapar.


Deixando claro que o único motivo para o afastamento é o aspecto orçamentário, Dutra comenta ter esperança de que o festival continue vivo pelas mãos de outra liderança. De acordo com ele, o grupo tomou a decisão de abrir mão da organização de maneira coletiva, por medo de que, mais uma vez, não conseguisse captar o mais de R$ 1 milhão necessário para realizar outra edição do festival. “Todos nós estamos muito entristecidos. Tem gente no grupo que, assim como eu, está desde o início. É muito trabalho, mas é uma atividade que enobrece muito e nos deixa muito satisfeitos com o resultado que ela tem perante a comunidade. É uma oportunidade cultural para a cidade e para a região e, ao mesmo tempo, movimenta o comércio e serviços. Com certeza, dá um aperto no coração, mas agora tem que prevalecer o espírito comunitário, social e de respeito por quem realmente possa abarcar toda essa ideia. Obviamente, gostaríamos de estarmos envolvidos, mas acima de tudo vamos manter o carinho por quem abraçar a organização no nosso lugar. Não queremos que o festival morra nunca”.


Um problema que se arrasta
A dificuldade na captação de recursos não é novidade. Desde a primeira edição, em agosto de 1992, os voluntários precisavam lutar para conseguir os recursos. Não raramente, dividiam o valor que faltava com dinheiro do próprio bolso. “Nós já tivemos uma interrupção em 2010. Naquele ano, cancelamos a edição do festival, porque em 2008 também faltou um pouco de dinheiro e decidimos dar uma pausa até a gente conseguir pagar todas as contas. A prefeitura nos ajudou, pagamos tudo e retomamos até o ano passado. É um problema recorrente, mas era administrável. Nessa edição, o valor que faltou foi muito alto”, explica.


Embora conte com recursos de bilheteria, patrocínios sem incentivo e verba da Prefeitura, a maior parte do valor é conseguida por meio da Lei Rouanet, que permite que empresas destinem recursos a projetos culturais e abatam 100% deste valor no imposto de renda, ao invés de repassar o dinheiro para o governo em forma de imposto. No XIV Festival Internacional de Folclore, realizado em agosto do ano passado, a AOFFERS esperava captar quase R$ 650 mil pela Lei Rouanet, o suficiente para cobrir as despesas do evento. No entanto, na véspera, quando não havia mais tempo de suspender a programação, alguns patrocinadores alegaram que não poderiam contribuir com o valor combinado anteriormente. Isto fez com que o orçamento diminuísse em quase R$ 200 mil. O evento aconteceu normalmente e, até o fim de 2018 (data limite para captação pela lei), os voluntários, contando com a colaboração do prefeito Luciano Azevedo, seguiram buscando patrocínios, mas não conseguiram o total esperado. Assim surgiu a dívida de R$ 147 mil, que precisou ser quitada com recursos de voluntários, sem esperança de ressarcimento.


Ainda segundo Dutra, em outras duas edições, quando também houve falta de receita, a Prefeitura encaminhou um projeto de lei e, por meio dele, fez a complementação com recursos próprios do Município. No ano passado, no entanto, o prefeito já havia deixado claro que o Município não teria condições de fazer mais um projeto para ressarcir outra falta. “É importante salientar que as contas estão pagas, o festival não tem dívidas, conseguimos pagar tudo o que faltava com o nosso dinheiro. A escolha de não participar mais da organização é por não termos mais estrutura caso falte mais uma vez. A gente não sabe como vai ficar a situação econômica e social do país, precisamos de investimentos na área da cultura e está tudo muito incerto. Nós precisamos de um tempo. Não queremos assumir o compromisso agora, por isso avisamos o município antes, para que ele tenha tempo de se organizar e procurar outro interessado”.


Abatido, ele admite que a escolha não veio de maneira fácil. “Eu levei um tempo pensando na decisão. Nós estamos desde dezembro nos reunindo com o grupo, conversando e buscando alternativas. Surgiram muitas sugestões, como diminuir o tamanho ou fazer outras coisas, mas a estrutura e o modelo que tem o festival hoje, essa formatação, se você diminuir você não consegue cumprir o programa e a responsabilidade que tem com os patrocinadores. Não cumprindo, você perde ainda mais patrocínios. É uma cascata. E a estrutura, vai fazer aonde? Não tem outro espaço que consiga abarcar tudo assim e ainda mais se for muito longe”.


Festival surgiu dentro do Terra Pampeana
A ideia de criar um festival com a temática folclórica surgiu em 1990, a partir da paixão pela arte vivida por um grupo de jovens – entre eles Paulo Dutra – que integrava o Terra Pampeana. Naquele ano, enquanto fazia uma viagem pela Itália a convite de alguns festivais, o coletivo teve a ideia de realizar seu próprio evento, onde pudesse mostrar à comunidade passo-fundense o que era um festival de folclore. “Nós voltamos da viagem e começamos a discutir o assunto. Acabamos montando uma proposta e levamos até a prefeitura. Em 1992 aconteceu a primeira edição, no Parque de Exposições Efrica”, conta Dutra.


Saudoso, ele lembra a saga enfrentada pelos voluntários em 1990 para tirar a ideia do papel. Eles passaram semanas percorrendo bairros de Passo Fundo em busca de apoio. “Para a preparação da primeira edição fomos montando uma equipe. A base era o Terra Pampeana, mas aos poucos contamos com mais pessoas que nos ajudaram a organizar. Fizemos uma série de reuniões com a comunidade. Onde tinha um grupo de pessoas, nós íamos lá para conversar com eles. Fomos visitar igrejas, escolas, clubes, associações, tudo para apresentar a ideia e pedir colaboração. Felizmente, fomos bem sucedidos nesse processo e o festival se tornou o que é hoje”.


O que Dutra se refere, ao dizer que o festival “se tornou o que é hoje”, é o título de um dos maiores festivais da região, que a cada edição reúne um público de cerca de 100 mil pessoas. Mais ainda, o prêmio de Melhor Festival de Folclore do Mundo, de acordo com avaliação da Federação Internacional de Festivais de Dança (FIDAF), com sede na Coreia do Sul. “Foi uma emoção que nunca tínhamos tido antes”, comenta. Orgulhoso, o presidente da AOFFERS salienta o caráter popular e democrático do evento, que ajudaram na conquista do prêmio. “Não é só o festival centralizado na lona, no Parque da Gare. Ele acontece na rua, nas oficinas, no shopping, nas praças, nos desfiles, no supermercado. A pessoa sai para fazer uma compra e dá de cara com o festival. Acho que por isso é um evento que se tornou tão popular e ao mesmo tempo muito urbano”, explica.


Temporariamente afastado do cargo de presidente do festival, Dutra diz que, enquanto a AOFFERS pensa no que fará depois de 2020, outras atividades exercidas pela associação devem ter continuidade, como a preparação de grupos gaúchos que são enviados a festivais em outros estados e países. Ainda sem perder a esperança de retornar à liderança do festival no futuro, em melhores condições. “A organização do festival sempre foi feita com muito amor. Não vamos participar no trabalho da edição do ano que vem, mas eu penso que devemos continuar com o grupo, nos encontrando e conversando para tentar discutir a viabilidade de retomar a realização daqui alguns anos, com os pés no chão”, finaliza.

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