Por dentro de uma noite na Independência

Alvo de críticas, a rua boêmia de Passo Fundo é defendida por quem vive dela. Há 47 anos com estabelecimento no local, empresário pede: ?EURoePrecisamos salvar a Independência?EUR?

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A impressão era de que aquelas pessoas jamais se conheceriam se fosse de outra forma. Era uma dupla, um trio e aquele hippie argentino com seus longos dreadlocks e óculos escuros – mesmo não havendo sol para se proteger. Ao lado de um dos bares da rua Independência, logo na primeira quadra abaixo da Praça da Cuia entre os números 400 que se perdiam nas paredes que davam para a calçada, cantavam uma do Charlie Brown Jr., sem se importar com a desafinação que doía aos ouvidos. “E disso os loucos sabem. Só os loucos sabem”, berravam. Outros dois, “da mesma firma”, se aproximavam. No outro dia seria muito provável que nenhum nome fosse lembrado. Mas, enquanto juntos, unidos pelo dedilhar do violão, a amizade parecia de perfeitos conhecidos.

 

Outros, como estes, apareciam aos poucos em pontos que se estendiam pela mesma rua até ela ser cortada pela Benjamin Constant. Um espaço territorial de três quadras. Fronteira da rua que insiste em não dormir com o comércio de Passo Fundo.

 

Ali se refugiavam alguns levados a saciar sua gula, sua sede, outros pediam seus trocados ou aproveitavam-se do movimento para lucrar com a venda de flores ou doces. Eram nítidos os amores de uma noite também.  Nascidos ali. Vinham de lugar qualquer e tinham as bocas encontradas na ânsia por um amor de menos de 24 horas.

 

Afora eles, os garçons tomavam a rua para acenderem seus cigarros, recolher e entregar copos ou mesmo estender a um ébrio um lanche que fizesse sua pressão subir diante do toque salgado da comida no paladar.

 

Noutro dia, uma briga entre jovens, adolescentes, um pouco mais distante de onde cantavam aqueles desconhecidos, fez um garçom reclamar.

– Acho que tinham que acabar com esses camarotes!

– Camarotes?

– É, esses camarotes aí – e apontou para os canteiros de concreto que dividem a rua em duas –, e com essa venda de kit. As pessoas tomam esses kits e deixam na rua. Tinha que acabar. Só que aquilo – voltou a falar da discussão da rua – não foi briga. Briga mesmo eu nunca vi. O problema é que o cara mexe com a mãe do cara. Minha mãe não tem nada a ver. Ta em casa dormindo – e saiu, indo ao outro lado da rua.

O kit, a que se referiu o garçom, é um pacote de vodka, energético e gelo. Acha-se por cerca de R$ 20 em alguns lugares pela rua. Em outros, a opção não existe, e se oferecem cervejas de rótulos coloridos ou bebidas da casa.  

 

“Não tem espaço, tem a rua”

Há um ano e três meses trabalhando em um destes bares, outro garçom lembra de memória a sina da rua Independência. Como uma minúscula Cidade Baixa – bairro boêmio de Porto Alegre –, reconhece nela os seres noturnos que aparecem toda semana e a quem acaba por conhecer de nome. 

 

Atrás do balcão, ele não parava de servir e recolher copos. “R$ 10 pila esse aqui, mocinha”, disse, estendendo um copo cheio e pegando o dinheiro. Tem 30 anos. Idade que, disse, nem esperava chegar. Saiu de casa aos 19 anos. Entre idas e vindas passou por outras cidades do Rio Grande do Sul e explorou o Nordeste brasileiro. Este era o segundo bar que trabalhava nas três décadas de vida. “E a Independência teve várias fases”, sentencia entre o abrir e fechar de uma torneira, o cumprimento a um cliente e a cobrança de algum pedido. “Eu acompanhei essa nova fase. Acho que a loucura começou quando abriram o da esquina.”

 

“O da esquina” é um bar que vende lanches e também bebidas. “Mas acho que no passado dava muito mais gente. É que, querendo ou não, esse bar é um pouco mais seleto”, e aponta para a tabela de preços, em que o copo mais barato sai a R$ 10. “Então quando vem a grande massa eles ficam na rua. Eu sempre fiquei na rua também. Só que o problema não é a galera. Por que o que é que o jovem vai fazer? Não tem espaço. Tem a rua. A rua da Independência. Ma é o que eu digo: o problema é o cara passando com som alto. A galera bebendo na rua não é o problema.”

 

Para ele, a rua poderia ser fechada aos finais de semana. A ideia esbarra em uma lei criada em 2017, que proíbe o consumo de bebidas alcoólicas na rua. O bar até exibe um cartaz com a informação. Mas é para lá que vão as pessoas. O texto da lei deixa claro: “Em todo e qualquer local público, de uso coletivo, independente de sua natureza, no qual o Poder Público Municipal detenha sua titularidade patrimonial, seja responsável por sua administração, bem como nas vias e logradouros públicos, fica proibido o consumo de bebidas alcoólicas.” Mas a rua que não dorme foge à regra.

 

“Só que o problema não é a galera e a bebida”, insiste na defesa. “O problema é que tem gente que vem pra fazer fusuê mesmo. Mas acho no geral tranquilo.”

 

Colega dele, outro garçom que está na casa há dois anos, reforça: “A galera sabe que a rua é assim. É uma rua de bar onde a galera se junta e tem mais liberdade para fazer festa.”

 

Em uma das mesas do estabelecimento, sentado ao lado de uma jovem mato grossense de 31 anos, a quem conheceu na cidade, o chileno Aliosha Bahamondet, de 25 anos, bebia um chopp pilsen. Está há três semanas na cidade, onde vende artesanato que fabrica para se manter e bancar suas viagens.

 

Deixou sua cidade, Punta Arenas (quase 4 mil quilômetros de distância de Passo Fundo), há dois anos, para viajar. Depois de passar pelo estado de Santa Catarina chegou ao Rio Grande do Sul.

 

Uma semana atrás, foi da rua Independência que tirou trocados rapidamente. “Em uma hora tu faz R$ 30, R$ 40”, calcula os “mangueios” – como chama a venda de artesanato. O tempo no Brasil já lhe rendeu um bom português, falado com o sotaque espanhol. “E o que eu acho da rua?”, repete. “Interessante. Você conhece uma galera. Canta junto. Não pára de passar gente e isso é bom”, reforça.

 

A tônica de que o lugar é um espaço em que se conhece pessoas está nas conversas dos que se aproximam um dos outros, fazendo alusão à alguma outra noite em que compartilharam conversas e bebida.

 

Rua boêmia

Do outro lado da rua, uma banda subia ao palco em notas de “rock e blues”. Aliosha e sua amiga foram para lá.  A casa não estava lotada. Mas aos poucos o som atraía os transeuntes que cruzavam a porta do bar. Ou que resistiam em entrar porque aglomeravam-se na porta, insistindo em conversas triviais, e que perdiam-se no balanço do som acústico e em outros copos de cerveja gelada.

 

Um dos garçons pega uma espécie de maçarico e mete fogo em um drink. A banda pede quem quer ouvir Raul, e toca umas do pai do rock brasileiro. As pessoas começam a se reencontrar. As mesmas que ali, noutra noite, também se conheceram.

 

É notável os que adentram embriagados dos sóbrios. Só que é para isso que ali estão. A banda troca o repertório. “A arte de amar a cachaça no bar e a cabeça cansada de pensar”, da banda gaúcha Cachorro Grande. Alguns se apoiavam no balcão. Na fila do banheiro outras amizades eram formadas. O garçom se empolga. Quase racha as mãos em palmas para os que mandavam o som. Aí abria outra garrafa. As apóiava nos ombros. A tampa atirava em um balde preso à parede. Mais errava que acertava. Até deixar o balcão para fumar um cigarro.

 

“Hoje a galera fala que tem gente. Mas já teve muito mais”, dispara, entre uma tragada e outra. Como os demais, ao começar a falar sobre a rua, segue a apontar os dilemas. Sabe que o local é alvo de críticas por sua boemia. Mas também o defende como um local necessário. “O problema são os bares sem propósito. Tem uma lei dos postos que impede que as conveniências vendam bebidas a partir de determinado horário. Aí as conveniências vieram para cá. Vieram para a rua. Mas bota dois policiais com um cachorro e deu. Não tem mais confusão.”

 

Ele falava da lei 4.849, que regulamenta o funcionamento de lojas de conveniências, criada em 2011. “As lojas de conveniências e congêneres, existentes junto a postos de comercialização de combustíveis, deverão permanecer fechadas para atendimento ao público, no horário compreendido entre zero horas a seis horas da manhã”, especifica o 2º artigo. “E os caras vendem aqui. Não tem propósito”, critica ele, que há cinco anos trabalha na noite.

 

47 anos de Independência

Eduardo Otto Wentz, o Edu, viu a Independência crescer e se tornar a rua boêmia de Passo Fundo. Está com 68 anos, mas há 47 anos instalou o Boka, que resistiu nesse quase cinquentenário a todas as mudanças que a rua sofreu. Na sexta-feira (12) à tarde, abriu o bar em um horário atípico. Buscou uma mesa ao fundo, de onde narrou a passagem do tempo.

 

Diz que tentou evitar falar sobre o assunto. “O assunto Independência”. Mas se abriu. “Em 1972 só passava uma que outra pessoa por aqui. E quem passava, passava com suas malas. Iam e viam da rodoviária. Tive muita dificuldade nesse tempo”, relembra.

 

A lanchonete surgiu de um plano entre amigos. A ideia era arrumar uns trocados. Chamaram um colega de Porto Alegre que os ensinou a fazer maionese e hambúrgueres e abriram um pequeno negócio entre quatro. Às 18h, quando todos os estabelecimentos fechavam, o Boka abria. Às 8h, quando todos abriam, o Boka fechava. O horário era para atingir o público noturno que, salvo outro estabelecimento, não tinha opção.

 

“Depois veio muita gente pra cá. Teve pizzaria. O galetinho. Churrascaria. Cantina. Peixe frito...”, elenca. “Agora as pessoas estão alugando uma pecinha e tão botando bar. Como não tem espaço interno elas vão pra rua. Quando ficam alteradas, elas gritam, assoviam. A rua fica tumultuada. Tem cliente de outros lugares que acaba vindo aqui pra usar o banheiro.”

 

Edu fica um pouco em silêncio e não deixa de reconhecer: “Passo Fundo deveria ter um local para as pessoas se divertirem. Já tentaram na Roselândia e tiraram. Foram para a Cidade Nova e tiraram. Foram pro Efrica e tiraram. A cidade precisa orquestrar um espaço para se divertir. Se não houver isso, vai acabar incomodando.”

 

O que o empresário analisa é que houve um aumento do público de rua, que não consome nos bares locais e se entrega ao kit. Ele acredita que o público da rua aumentou. Só no seu bar calcula que passam, semanalmente, 7 mil pessoas. “E isso inclui os que só passam para usar o banheiro”, e ri.  “Mas vou dar uma ideia de louco”, busca uma solução. “A fazenda da Brigada Militar. Não sei o que fazem lá, mas acho que poderia ser uma alternativa.”

 

Temos que salvar a Independência

Sem afastar-se do trabalho e com a experiência dos anos, disse que pelos vidros do bar “viu tudo o que se possa imaginar” na rua. De sexo, drogas, assalto até homicídio.

 

Mas como um jovem que cresceu pelo público da Independência, sentencia como em profecia: “Nós temos que salvar a Independência!” E se pode pedir algo pelas ruas dos bares, é que ela esteja na mira do poder público. Não como alvo a ser executado, mas como um local, “conhecido no Brasil inteiro”, que precisa ser cuidado.

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