OPINIÃO

As bibliotecas de J. L. Borges

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Para um homem que falava do universo como sinônimo de uma biblioteca e que assegurava nunca ter saído da biblioteca do pai, composta por infinitos livros ingleses, a julgar-se pelas muitas biografias escritas sobre ele, o tamanho da sua biblioteca pessoal, à primeira vista, decepcionava. A referência é ao escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) e, particularmente, as descrições feitas sobre o ambiente do apartamento em que viveu a maior parte da vida, no sexto piso, do número 994, na Calle Maipú, no centro de Buenos Aires.


Tome-se, como exemplo apenas, o livro “Com Borges”, escrito por Alberto Manguel, cujos relatos têm a autoridade de quem, quando jovem, trabalhando, depois da escola, na livraria Pigmalion, que tinha Jorge Luis Borges entre os seus clientes, foi convidado a servir como leitor para o escritor cego. A essa tarefa, Manguel, que admite ter tido a sorte de fazer parte do grupo daqueles que um dia leram para Borges, se dedicou, semanalmente, 3 a 4 noites, entre 1964 e 1968. Sobre a biblioteca pessoal de Borges, descreve que, na sala do apartamento, havia duas prateleiras brancas, com enciclopédias e dicionários, e duas estantes baixas de livros, de madeira escura. Além de mais duas estantes de livros no quarto de Borges e, possivelmente, algumas obras de literatura argentina, no quarto de Dona Leonor, a mãe de Borges. Frustrante, para quem esperava encontrar um apartamento abarrotado de livros. Sobre o apartamento de Borges, consta, como anedotário, que Mario Vargas Llosa, em visita que fez nos anos 1950, perguntou por que o mestre não morava num local mais luxuoso. Borges, que se sentiu ultrajado com a pergunta do jovem escritor peruano, teria dito: “Talvez as coisas sejam assim em Lima, mas, aqui em Buenos Aires, não gostamos de ostentar”.


Epifania Uveda Robledo (Fanny), a mucama que cuidou de Borges até a sua saída definitiva da Argentina para morrer na Suíça (14 de junho de 1986), no livro depoimento “El Señor Borges”, composto pelos relatos que fez a Alejandro Vaccaro, destaca que a biblioteca de Borges não era de tantos volumes como muitos podem imaginar. E a razão para isso, segundo Fanny, é que Borges, com a ajuda da irmã Norah, se desprendia com muita facilidade dos livros depois de usados ou que não lhe interessavam. Pedia a Fanny que fizesse pacotes de livros e, discretamente, deixava-os entre os volumes das livrarias que costumava visitar ou “esquecidos” embaixo de mesas de cafés, que, muitas vezes, os garçons acabavam devolvendo no apartamento de Borges, ou, simplesmente, deixados nos bancos da Praça San Martin. Outro relato curioso, feito por Fanny, é que Borges tinha o hábito de guardar dinheiro entre a páginas dos livros. Em geral, colocavam o dinheiro num livro grande, em cuja capa havia um camelo em relevo. E assim, quando precisavam ir ao banco, Borges, como piada, dizia: “Fanny, temos que dar de comer ao camelo”.


A principal razão, para o exíguo tamanho da biblioteca pessoal de Borges, foi, efetivamente, revelada, em 2010, no livro “Borges, libros y lecturas”, edição de Laura Rosato e Germán Alvarez, que se constitui no catálogo da coleção Jorge Luis Borges na Biblioteca Nacional da Argentina.


Laura Rosato e Germán Alvarez seguiram os “rastros” deixados por Jorge Luis Borges no acervo da Biblioteca Nacional da Argentina, onde o escritor ocupou o cargo de diretor de 1955 a 1973. Encontraram cerca de mil livros que pertenceram a Borges, com anotações de próprio punho do escritor, até 1954, quando efetivamente ele não conseguiu mais ler, ou feitas pelos leitores de Borges. Inclusive há, nesse acervo, alguns exemplares que fizeram parte da mitológica biblioteca do seu pai.


O mistério, para essa revelação ter tardado tanto, é que as direções da Biblioteca Nacional da Argentina, que sucederam a Borges, por divergências políticas e intelectuais com o escritor, sempre dificultaram o reconhecimento público das doações feitas por Borges para o acervo daquela instituição e dos méritos da sua gestão. Em resumo: coisa de gente medíocre!

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