"Nosso objetivo é trabalhar com elementos que estão pungentes na sociedade"

Mudança na Lei Rouanet não interfere na realização da 17ª edição da Jornada Nacional de Literatura, dizem organizadores

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Fabiane Verardi e Miguel Rettenmaier estão à frente da coordenação da JornadaFabiane Verardi e Miguel Rettenmaier estão à frente da coordenação da Jornada
Fabiane Verardi e Miguel Rettenmaier estão à frente da coordenação da Jornada
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Sob as tendas iluminadas, cobertas de poesia, os leitores encontram conforto na palavra. É no Portal das Linguagens, na Universidade de Passo Fundo (UPF), que pessoas do país inteiro se encontrarão entre os dias 30 de setembro a 4 de outubro para a 17ª Jornada Nacional de Literatura e 9ª Jornadinha Nacional de Literatura. Os coordenadores do evento, professores Fabiane Verardi e Miguel Rettenmaier, conversaram com a reportagem do jornal O Nacional sobre a nova edição, as novidades e o impacto da nova resolução federal para a Lei Rouanet.

 

O Nacional: Como está sendo o trabalho de preparação para 17ª Jornada Nacional de Literatura e 9ª Jornadinha Nacional de Literatura?
Fabiane: Quando assumimos, pensamos em uma remodelação da Jornada. A gente fez uma democratização da leitura e passamos a “jornalizar” a cidade com o protagonismo dos alunos e dos professores via agentes de leitura. Essas foram ações que deram muito certo e, nessa edição, são o foco do projeto. Continuamos com a parceria junto aos professores da rede municipal, estadual e também particular de ensino na pré-Jornadinha e outras ações vamos repensando.


Miguel: Nessa edição, a gente trabalha com quatro conceitos em aberto: diversidade, conexões, liberdade e futuro, tendo em vista que são expressões da fortuna estética, estavam nas artes e na literatura. Então, os incorporamos dentro dessa nova metodologia para que possamos discuti-los porque estamos percebendo que muito do imaginávamos como definitivo, em termos de compreensão dentro desses quatro elementos, se perdeu. A gente já não sabe muito bem o que é liberdade, não temos muita ideia do que é futuro; estamos operando pensando o futuro com instrumentos do passado. Tínhamos uma ilusão de que as conexões, especialmente nas mídias digitais, levariam uma circunstância de compreensão, de inteligência, mas elas estão nos colocando em uma circunstância de desinteligência, de desentendimento. Todas as expressões estão articuladas tendo essa nova circunstância como a base fundamental à necessidade da diversidade para a saúde de uma sociedade complexa.


ON: Como vocês pretendem trabalhar esses quatro temas, tendo em vista a complexidade, e que alguns deles são, de certa forma, delicados de abordar?
Fabiane: Nós trabalhamos muito com a questão dos temas muito linkados com os autores convidados e as obras propostas às crianças e ao público adulto. Eu acho que são temas que devem ser debatidos cada vez mais, então eu acho que polêmica a gente não deve gerar. Mas, são temas pungentes.


Miguel: Em termos de manifestação artísticas, eu não conheço nenhum tipo que trabalhe dentro de uma passividade e de uma tranquilidade de relações. Toda manifestação artística nasce pela via de um incômodo e de um processo que está gerando um conflito. Em hipótese alguma, não é nosso objetivo afrontar qualquer tipo de estatuto ideológico. O nosso objetivo é trabalhar com elementos que estão, como a Fabiane ponderou, pungentes, que estão na sociedade. Falar de literatura e não falar de diversidade, nesse momento, é esquecer parte da produção literária da atualidade que é orientada pela diversidade.
Fabiane: E a gente trabalha com autores contemporâneos. Então, o autor contemporâneo não tem como se furtar da realidade que o cerca.

 

ON: Na edição anterior, a Jornada Nacional de Literatura homenageou Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Ariano Suassuna e Moacyr Scliar. E em 2019?
Miguel: Não vamos tranalhar com autor homenageado dessa vez. Na edição passada, foi uma coincidência porque foram anos de nascimento ou de morte dos autores. A Clarice faleceu em 1977, o Drummond em 1987, o Suassuna nasceu em 1927 e o Scliar nasceu em 1987. Então, era bastante 7 para 2017, né? [risos] Foi uma boa sacada nossa, temos que reconhecer. Mas não é porque uma ideia é boa em uma edição que ela vai ser boa na outra e a Jornada está sempre se modificando. Isso é um elemento que nos motiva, essa necessidade de mudar o tempo inteiro permanecendo naquilo que deu certo como metodologia.


ON: A Jornada de 2017 foi descentralizada e, relativamente, menor em comparação às edições anteriores, como em 2009, por exemplo, quando realizou-se uma das maiores. Nessa 17ª edição da Jornada, o Portal das Linguagens se mantém como sede?
Miguel: Sim. Mas, a edição anterior não foi menor. Ela atingiu o mesmo número na grande lona e mais crianças na Jornadinha. As pessoas têm essa visão [de que foi menor] porque nós, em nenhum momento, utilizamos a quantidade como um aspecto diferenciador. Ela teve um orçamento menor, mas ela não foi menor não. Digo que foi até maior porque quando fomos para os bairros, centenas de crianças e dezenas de escolas foram envolvidas.


Fabiane: Além dos bairros, nós fomos para quatro cidades diferentes do Rio Grande do Sul, em que houve um envolvimento pioneiro no estado com a aquisição de obras capazes de atender quatro Coordenadorias Regionais de Educação (CREA) e que, nesse ano, irá se repetir. O valor já está disponível para a aquisição das obras.


Miguel: Esse projeto estadual foi o “Jornalendo”, feito com a ajuda da professora Maria do Carmo Mizetti, que é coordenadora dos livros e bibliotecas da secretaria. A aquisição de obras literárias foi feita pelo estado com distribuiçao dos exemplares em três cidades além de Passo Fundo.


Fabiane: E as ações que fizemos como “Livros na Mesa: Leituras Boêmias”, aconteceram nos bares e atingiram pessoas que não estavam inscritas na Jornada. O público passo-fundense, que é um público leitor, mas às vezes não se sentia contemplado com a Jornada, pode conhecer um autor de que era leitor. Quando fizemos o “Caminho das Artes”, fechamos a [rua] Independência com diferentes manifestações artístico-culturais e o público teve acesso a essas expressões artísticas. Ou seja, tivemos atividades paralelas que atingiram muito mais pessoas do que as que, efetivamente, estavam dentro do complexo de lonas.


Miguel: Algumas pessoas tinham a compreensão de que a Jornada era uma movimentação para professores e alunos. E um dos aspectos que tentamos, de alguma maneira, descontituir foi esse. É para professor e aluno? É. Mas, é pra leitor. Muita gente veio à Jornada a partir da política de, ao invés de fazer a inscrição para a semana toda, adquirir ingresso individual.


Fabiane: E a “Saúde Jornalizada”, realizada em um ambiente não-formal de leitura. Em um espaço de dor e doença, a Jornada esteve também.


Miguel: Inclusive, nos últimos dias do evento, um dos músicos responsáveis pelo tema da Jornada foi até o Centro de Tratamento Oncológico e fez um pequeno show para as pessoas que estavam se medicando. Era um espaço no qual jamais tínhamos transitado, que é o espaço hospitar.


ON: Ou seja, toda as programações paralelas estão mantidas para essa nova edição da Jornada?
Fabiane: Mantemos o que, para nós, foi exitoso na Jornada. Além disso, ouvimos as pessoas para conhecer todas essas demandas e sentimos que as escolas, alunos e leitores foram contemplados. A população de Passo Fundo percebeu que a Jornada não é só da Universidade de Passo Fundo ou só da Prefeitura Municipal, ela é da cidade de Passo Fundo. A Jornada de Literatura é o maior evento literário do Brasil e acontece aqui.


ON: O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, sinalizou apoio à Jornada durante um encontro com a comissão organizadora do evento. Além da verba destinada à compra das obras literárias, o que mais ficou acordado?
Miguel: A liberação do ponto para os professores durante a semana e um valor relativo ao Jornalendo. Conversamos também sobre o Prêmio Josué Guimarães. Foi sinalizado o apoio de estatais, porém não temos nada acordado ainda.


ON: Vocês informaram que um dos temas trabalhados durante essa Jornada será a diversidade. E na Jornadinha, como esses conceitos serão abordados?
Fabiane: Na Jornadinha, pensamos em um espaço para as crianças estarem. Então, estamos focando muito nas constelações, que é o nome de cada uma das tendas onde elas estarão e trabalharão os diferentes gêneros, mas gêneros textuais, nos quais elas lerão desde poesia até quadrinhos. Teremos autores indígenas, negros, abordando a diversidade de outras formas e a literatura infantil e juventil descolada da pedagogização. A nossa intenção é de que as crianças saibam que existem diferentes tipos de gêneros textuais e autores porque temos muito foco ao escolher as obras, pensadas na faixa etárias das crianças. Na hora em que a literatura for pra ensinar, ela deixou de ser literatura.


ON: Nessa edição, terá alguma novidade sob as tendas da Jornada ou da Jornadinha?
Fabiane: Nós buscamos dar voz à literatura que consideramos consagrada, a autores conhecidos e, também, aos iniciantes. Esse ano nós inovamos porque, em uma das tendas, vamos trabalhar somente com quadrinhos. A ideia é trabalhar com diversidade sim, mas diversidade textual e temática. Mantivemos, também na Jornadinha, o Slam de Ilustração porque queremos que as crianças trabalhem com a leitura do não-verbal. Além disso, teremos o Grupo Crianceiras, que irá fazer um espetáculo lúdico sobre Mário Quintana e linkando com a Bruna Lombardi.


Miguel: Um aspecto que vamos trabalhar são essas conexões que a Fabiane mencionou. Uma das novidades também, para a Jornada, é que, a partir de uma experiência anterior, percebemos o quanto o cânone é importante para as pessoas. Por isso, estaremos estabelecendo conexões dos autores contemporâneos com o cânone. Teremos, por exemplo, o escritor Tiago Ferro que tem um livro chamado “O pai da menina morta”, em um elemento autobiográfico relacionado a perda de uma filha. Ele a todo momento cita o Eric Clapton, que também perdeu um filho. Nós associamos, portanto, o livro com o álbum Unplugged, do Clapton na música Tears in heavan, que trata justamente da mesma temática.


Miguel: É um método muito complexo e não apenas “discussões em uma lona” porque isso realmente não queremos.


ON: O governo federal estipulou o teto de R$ 1 milhão para a Lei Rouanet. O que essas alterações propostas significam ou impactam na realização da Jornada de Literatura?
Miguel: Eu acho que não nos atinge porque não temos nenhum aspecto que possa impedir, por enquanto, a nossa proposta. O nosso orçamento está previsto pela portaria dentro do teto de gastos e, nesse momento, estamos preocupados com os prazos. Uma coisa que temos a observar é que a resolução da Lei Rouanet demorou muito a sair. Foi publicada a portaria, mas o sistema ainda não está recebendo os projetos e isso nos impacta. A partir daí, teremos que correr muito contra o tempo para conseguir realizar aquilo que pretendemos.


A Jornada Nacional de Literatura é uma realização da Universidade de Passo Fundo e da Prefeitura Muncipal de Passo Fundo. Entre os autores confirmados para essa edição, estão Bruna Lombardi e Felipe Pena.

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