Historiador quer tornar acervo público

Formado por mais de mil livros e centenas de documentos, material reunido pelo professor Ney d´Avila ao longo da carreira ainda não tem destinação assegurada

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O acervo pessoal possui mais de mil obras sobre História, política, economia e literatura clássicaO acervo pessoal possui mais de mil obras sobre História, política, economia e literatura clássica
O acervo pessoal possui mais de mil obras sobre História, política, economia e literatura clássica
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Cercada pelos troncos altos de eucalipto, a casa do economista e historiador Ney Eduardo Possapp d'Avila protege uma vida inteira de memórias e sapiência. Abrigados no interior da residência, livros, páginas de jornais, materiais datilografados e xerocados aguardam um novo local para ser compartilhado publicamente.

 

O acervo pessoal, incrustado à sombra do número 385, no bairro São Luiz Gonzaga, foi destinado pelo próprio intelectual para ser fonte científica aos pesquisadores que se debruçam em teses nos diversos segmentos do conhecimento. Entre os mais de mil exemplares que se aglomeram na antessala da construção ou repousam em prateleiras altas, ainda de ferro, no cômodo ao lado, páginas clássicas da literatura mundial, política e econômica escritas em português, russo e espanhol padecem sob a ação da poeira, umidade e ausência de luz desde que d'Avila transferiu a residência para a casa da filha, em São Paulo, após o estado clínico de saúde requerer um cuidado mais intensivo. “O contato demorou a ser respondido, pois eu estava fazendo uma caminhada e deixado o celular em casa”, descontrai.

 

Por telefone, o historiador reconta pontos primordiais da produção intelectual que o torna figura referencial na abordagem histórica da cidade. “É uma obrigação que eu tenho. Quero contribuir de outra maneira para que haja uma continuação científica, sobretudo, no estudo aos pontos obscuros na história de Passo Fundo”, manifesta-se. Aos 78 anos, dos quais mais de 40 dedicou à Academia, d'Avila compila estudos históricos sobre Passo Fundo e municípios da região, como Ernestina, Lagoa Vermelha e Frederico Westphalen, cujas obras também estão reunidas, no espaço provisório, ao lado dos escritos de Antonio Callado, Drummond e Marx. Dicionários, ainda das décadas em que apresentavam as folhas protegidas por capas mais rígidas, se apertam no canto das estantes que só não transbordaram porque parte dos documentos já foram entregues ao Instituto Histórico de Passo Fundo (IHPF) para serem catalogados.

 

“A ideia do Ney é que tudo seja destinado para uso público e de um maior número de pessoas”, conta o membro da Academia Passo-Fundense de Letras e coordenador da Sociedade dos Poetas Vivos, Júlio Perez. Desde a troca de endereço do historiador, ele é o responsável legal designado por d'Avila com o propósito de garantir que o acervo seja preservado e relacionado pelas instituições públicas. “Espero que esse acervo seja conservado em sua totalidade porque ele é um repositório da cultura”, pondera.

 

Com as chaves em mãos, ele caminha pela propriedade que já foi uma fortaleza natural erudita e repousa, agora, sob o chão enlameado. “As árvores estão sendo cortadas porque tudo será colocado à venda”, revela Perez. A moradia discreta, facilmente despercebida por aqueles que cruzam a rua, tem ainda a tutela provisória de bibliografias políticas escritas pelos líderes soviéticos Lênin e Trótski, e literaturas que narram a história gaúcha e da América Latina. Além de serem títulos para o estudo técnico-científico, os livros são o reflexo de quem os estudou por um longo período.

 

A história em carne e sangue
Exilado em Moscou durante cinco anos, Ney d'Avila construiu, no país, a formação acadêmica em Economia quando a Rússia ainda era integrante da União Soviética. “O que houve na União Soviética foi um meio termo entre o capitalismo e o socialismo. O que fracassou não foi o socialismo, mas a ausência dele”, avalia. Autodescrito com uma “visão crítica sobre ambos regimes políticos”, d'Avila viveu por mais 12 anos em outros países da Europa, onde atuou como intérprete e tradutor do idioma russo. Além do português e da língua eslava, o historiador afirma ter o domínio de, pelo menos, mais três idiomas. “Espanhol, francês. Também estudei latim e grego”, enumera. Isso, portanto, explica a diversidade de traduções da bibliografia que preserva e disponibiliza à comunidade científica e geral. “Aprendi a separar minhas ideias filosóficas da minha objetividade histórica”, assegura.


No retorno a Passo Fundo, dedicou-se à graduação em História. “Eu confio muito na História. Há um permanente movimento de reescrita dela, mas o que se modifica não é o fato, porque ele já aconteceu, mas o modo como ele é contado”, atesta.
Dos conflitos que ocorreram no Rio Grande do Sul, entre 1889 à 1930, como a degola do Rio Negro, em Bagé à história local, com “Cabo Neves: fundador da cidade de Passo Fundo”, d'Avila, também professor universitário, debruçou-se em investigações históricas que, segundo ele, “foram sonegados” da história da cidade. Há um ano, iniciou a escrita de mais um livro, ainda inédito. Desta vez, dedicado a abordar os acontecimentos citadinos que envolveram Antonio da Silva Loureiro, o Barão. “Falta ser editado e foi a pedido da família. Esses estudos podem causar algumas modificações na história de Passo Fundo”, crê.


A incerteza quanto à destinação do volume de conteúdos presentes nas obras do acervo pessoal do historiador gera reações nos intelectuais que acompanham a bibliografia do professor. Para Júlio Perez, a criação de um acervo com o nome de Ney d'Avila e a escrita de uma possível biografia seriam maneiras de homenageá-lo por sua contribuição à comunidade científica. “Ele teria a certeza que o legado dele seria preservado”, alude.


Sobre essas declarações, d'Avila desconversa. “Eu nunca fui uma pessoa com uma única visão, sempre procuro olhar todos os lados. O que eu quero que apareça não é o meu nome, mas a produção que disponibilizei”, discorre.

 

Destinação do acervo
De acordo com o coodenador da Sociedade dos Poetas Vivos de Passo Fundo, Júlio Perez, parte desse acervo, que contém mais de mil itens, foi destinado ao Instituto Histórico de Passo Fundo (IHPF). No sábado (4), integrantes da comunidade científica deverão ir à casa do professor d'Avila para avaliar a bibliografia. “Tudo o que for referente à História, é de interesse do Laboratório de Arqueologia e Cultura Material da UPF e temos condição de abrigar”, diz o coordenador do laboratório, prof. Luiz Carlos Tau Golin.

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