OPINIÃO

Entre o trem e o rabecão

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Quem passa pelo Cemitério Municipal Vera Cruz e arredores não tem como imaginar que, naquele local, não fosse pelo inusitado desfecho de uma disputa político-partidária entre chimangos e maragatos, no contexto da Revolução de 1893, no lugar de rabecões carregando defuntos e pessoas chorando os mortos, em tese, teríamos, durante boa parte do século XX, locomotivas fumegantes puxando vagões e burburinho de gente chegando ou saindo da cidade. Em vez do “campo santo”, pelo projeto original da comissão chefiada pelo engenheiro João Teixeira Soares, aquela área fora, inicialmente, a escolhida para sediar o terminal ferroviário local, envolvendo a estação de passageiros e cargas e uma gare (garagem e oficinas para locomotivas e vagões).


A tese, esposada pelo historiador Ney Eduardo Possap d`Avila, apesar de não ter merecido consideração na historiografia oficial do município, é que, essa mudança radical de planejamento, não aconteceu por acaso. Como entender a mudança do traçado original da via férrea e da localização do terminal ferroviário? Qual a justificativa para a construção da Estação e Gare em local, na época, afastado da cidade e, para agravar, perto de um cemitério? Impossível, segundo Ney d`Avila, se dissociado do acirramento dos confrontos entre Liberais-Federalistas, de um lado, e Republicanos, do outro.


Passo Fundo, cujo início do povoamento por Cabo Neves, em 1827, deu-se nos arredores da Praça Tamandaré, foi elevado de vila para cidade a 10 de abril de 1891; não por acaso o dia aniversário do Coronel Gervasio Lucas Annes. Era o sinal claro que os Liberais, que haviam dominado a política local durante a monarquia tiveram o seu lugar ocupado pelos Republicanos, em tempos de Júlio de Castilhos. Na esfera passo-fundense, digladiavam-se os seguidores de Gervasio Lucas Annes, alçado ao posto de Coronel da Guarda Nacional, e os adeptos de Antônio Ferreira Prestes Guimarães, futuro general do Exército Federalista. Porém, mais do que Prestes Guimarães, o alvo principal dos chimangos era o seu correligionário mais próximo, o comerciante Antônio José da Silva Loureiro, de alcunha Barão, um personagem proeminente durante a monarquia.


Ney d`Avila usa, especialmente, para a construção da sua tese historiográfica, a tradição oral que tem sido perpetuada pelos membros da família Annes. Entre essas, o relato que lhe fez o médico Sérgio Paulo Melo Annes (1918-2016), em 2007, ao confidenciar que, sim, houve a intervenção do seu tio-avô, Gervasio Lucas Annes, para a mudança do plano inicial do traçado férreo e da localização da Estação e que, também, foi ele quem determinou a construção do Cemitério Público no Potreiro do Barão. E, em adição, os escritos de Alceu Oliveira Annes, na obra Genealogia Lucas Annes, onde, na página 211 da versão de 06/01/2012, pode ser lido que “quando o Barão retornou a Passo Fundo, depois da Revolução de 1893, após permanecer alguns anos no Uruguai, alguns correligionários, foram ao Cel. Gervasio, dizendo-lhe de sua intenção de fazerem um desaforo, ou algo que magoasse profundamente o recém-chegado. (...) - Não façamos isso! Temos que fazer algo pior! Disse o Cel. Gervasio. O quê Coronel? Dar-lhe uma sova? - Algo pior! Tornou a dizer o Cel. - Devemos matá-lo? - Algo ainda pior! - Mas então o quê Coronel? - Vamos causar-lhe prejuízo! Vamos construir um cemitério em seu campo (...) Assim o Cel. Gervasio satisfazia às reivindicações dos correligionários mais extremados, enquanto resolvia problemas da cidade, cujo antigo cemitério católico, situado onde hoje é o Banrisul da Av. General Neto, ficara pequeno e encravado entre residências. ”


Tudo indica que, para agradar a cúpula local do Partido Republicano Rio-Grandense, o traçado da linha férrea foi alterado, o terminal ferroviário foi construído no local onde, hoje, temos o Parque da Gare, e, em 1º de janeiro de 1902, era inaugurado do Cemitério Vera Cruz. Um cemitério, apesar do nome, não-confessional, seguindo os ditames da República, nas terras de Antônio José da Silva Loureiro, o Barão.

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