A primeira vez que Maria* fugiu do Instituto Penal de Passo Fundo (IPPF) foi porque seu filho de quatro anos estava com bronquite. Ele foi gerado quando ela já estava no cárcere, respondendo por assalto e tráfico. Em um dia de visita, misturou-se aos detentos e conheceu o homem que hoje chama de marido. Já tinha um filho de 10 anos, do primeiro relacionamento. Não o viu mais porque não queria o guri metido no ambiente cinza do cárcere. Se nem ela, no auge dos 20 anos, sentia-se confortável naquele ambiente, quanto mais a criança que logo atingiria a adolescência. O menino, por ser filho do novo amor, não tinha os laços com ela cortados ainda. Então pegou algumas roupas, fazendo uma grande corda, e saiu muro a fora "Depois me pegaram", recorda-se. "Mas eu precisava cuidar do meu filho".
Maria é uma mulher miúda, que hoje tem 32 anos e longos cabelos negros e ondulados. Ela faz parte do quadro de 31 detentas do Presídio Regional de Passo Fundo (PRPF), a maioria mães, que vivem longe dos filhos por cumprir pena por algum tipo de crime. O domingo (12), Dia das Mães, aparece para elas entre o orgulho e a tristeza. Do prazer em ter gerado uma vida, mas o lamento de não poder abraçar a prole no dia que é dedicado a elas.
Natural de Passo Fundo, Maria teve desde a infância a presença de seu pai e de sua mãe. Apesar de não achar que falharam em sua educação, não os vê como os pais perfeito ou como referência de família ideal.
Aos 22 anos provou crack pela primeira vez. E não teve volta. Internou-se para largar o vício, mas não foi o suficiente. E isso foi o que a levou a ser presa, em 2010. "Eu estava com as pessoas erradas na hora errada", julga-se, fugindo dos detalhes do enquadro que a levou a usar algemas. "E até hoje não consegui provar?' Maria diz que não teve culpa. Era usuária e acabara caindo de forma despretensiosa. Não lhe atribui culpa. Apenas a de ter adquirido um vício que nunca mais a abandonou.
No cárcere é que encontrou uma outra família. De colegas de cela a um novo amor.
Grávida do terceiro filho agora, vê de novo a maternidade chegar por de trás das grades. As algemas que usava quando conversávamos na manhã levemente mais fria de quinta-feira, dia 9 de maio, não combinavam com a saliente barriga de oito meses. Ela vestia uma camiseta branca, de um tecido fino, e uma calça legging azul, bem acentuada abaixo da barriga.
A previsão é de que a criança nasça no próximo mês. Ela compartilha com alegria o nome escolhido para o terceiro menino que poderá chamar de filho ao mesmo tempo em que lamenta coisas pequenas, como a falta de um enxoval adequado ou de uma bolsa a que possa levar para a sala de parto, como teve quando nasceu o primogênito.
Passar pela maternidade atrás das grades a deixa alheia de privilégios comuns a muitas mães. Quando o filho do meio nasceu, ela lembra que as dores vieram ainda à noite e, já na manhã seguinte, tinha o filho em mãos nascido por parto normal. Na época, há seis anos, ela foi autorizada pela Justiça a ficar um ano em regime domiciliar para o aleitamento da criança.
O direito é garantido por lei, que determina que a criança fique com a mãe por pelo menos seis meses. Maria contou com tempo a mais. Mas assim que se completaram os 365 dias precisou separar-se do menino. "E foi muito ruim", lamenta. "Só que antes cedo do que tarde. Hoje acho que ele necessita muito mais dos meus cuidados, porque naquela época ele não entendia muito. Então a sensação é muito ruim."
Maria já antecipa as dores da separação do guri que virá ao mundo. Ela não sabe se receberá autorização para permanecer um ano coma criança, como aconteceu na segunda vez. Mas entre as incertezas, ela fala firme do que planeja para os próximos anos.
"Eu quero sair daqui e cuidar dos meus filhos. Não deixar eles caírem?' O caírem a que Maria se refere é em relação ao uso de crack, uma droga que ela chama de "bicho". Longe das crianças e sem poder ver o desenvolvimento de cada um, o que ela teme é que um dia eles estejam em uma situação tal qual ela e o marido. Ele já saiu da prisão e cuida do filho menor. Mas ela que permanece no cárcere não quer as crianças ali nem pequenas para lhe visitarem e nem grandes, cumprindo pena por crime qualquer. "Eu tenho medo. Hoje em dia é tudo mais fácil que antigamente. Quero aconselhá-los. Falar com eles. Talvez foi isso que me faltou. Então quero colocar meus filhos embaixo das minhas asas. Ter uma família. Viver uma família. Porque até agora eu não consegui. Não desejo que nenhuma mãe fique longe dos seus filhos.'
Ana* também foi presa por tráfico de drogas, em 2010 e depois em 2015. Na primeira vez ela respondeu em liberdade. Reconhece que estava envolvida no crime, mas na segunda, se esquiva: Não vendia mais. O que conta, é que caiu em uma operação da polícia que tinha seu nome na investigação de longa data. "Não acharam nada comigo daquela vez", sentencia. Ela também é uma mulher miúda. Tem 44 anos e uma voz já rouca pelos anos de uso de cigarro. Mãe de cinco - três meninos de 29, 28 e 22 anos, e duas meninas, de 17 e 14 anos -, Ana conta que quando vendia maconha não permitia o envolvimento dos filhos, escondendo a real fonte de renda da família.
De todos, apenas o mais velho não vivia com ela, por já ser casado. E com pesar é que conta que em nome do sustento dos seus é que passou a vender a droga. "Eu me arrependo de bastante coisa que aconteceu. Em 2010 eu traficava mesmo. Fui envolvida. Mas essa de 2015 eu tava até trabalhando. Fazia faxina quatro vezes por semana. O que acontece é que você quer ver seus filhos bem vestidos. Balcão cheio. Agora eu já penso diferente. Melhor comer uma polentinha com feijão e arroz do que estarmos separados!'
Antes de 2010 ela disse que trabalhava na produção de uma indústria frigorífica. Ali ganhava algo equivalente a R$ 1 mil por mês. Em contrapartida, ela recebia o mesmo em uma semana no tráfico. A ascensão sonhada, ainda que pelo crime, é o que lhe mantém presa quatro anos depois da segunda condenação. Não fosse ter sido citada como uma das envolvidas no assassinato de uma presidiária do regime fechado do Presídio Regional de Passo Fundo (PRPF), disse que já estaria em liberdade.
Neste sábado (11), Ana esperará a visita das filhas. Faz 15 dias que não as vê. Já os filhos de 29 e 22 anos, nunca apareceram. Geralmente, as gurias aparecem quinzenalmente, e a cada passar do ano em que vive mais um Dia das Mães no cárcere, Ana não deixa de chorar. "O Dia das Mães é doído. Mas fazer o quê. Quando minha filha de 17 anos fez 15 eu não pude dar uma festa de aniversário. Toda menina quer uma festa de 15 anos. A mais nova já disse que não quer festa. Que se eu não estiver junto não é pra ter. Então fico fazendo planos. Só quero a gente junto em casa como sempre foi. Porque você perde muita coisa?'
Caroline*, de 35 anos, se cala quando pensa no domingo. "Como vai ser o Dia das Mães? Não sei", e chora , levando as mãos coladas na algema ao rosto, na tentativa de secar as lágrimas que correm por sua face. Seus filhos têm 18,17, 8 e 4 anos. Sendo duas meninas e dois meninos. A última vez que os viu foi em março. Mas não foi a todos. Sempre que a visitam vão de dois em dois.
Um tempo de espera que sempre a surpreende ao ver o desenvolvimento que acompanha de longe. Assim como Ana, Caroline se dói pelo tempo perdido e as pequenas coisas do desenvolvimento dos filhos que não viu por não estar com eles. "Quando meu menor deixou de engatinhar para andar, eu não vi", desabafa.
O nome de uma das crianças está tatuado em seu braço direito. Ela o exibe com orgulho, como marca registrada da mãe que é. Arrependendo-se, apenas, de um dia ter começado a traficar. "Eu fui presa em 2016, com meu pai e dois irmãos. Caí em umas filmagens que pegaram na época. Mas eu já estava trabalhando quando fui pega. Era auxiliar de cozinha, tinha carteira assinada. E tenho ainda. Quando sair daqui vou buscar meu emprego de volta"
Embora o cárcere seja enfadonho e a deixe em uma situação alheia do que acontece com a própria família, nem Caroline, Ana ou Maria colocam em xeque a maternidade. Não se diminuem ou se julgam como péssimas OU melhores mães por isso.Atrás dos motivos que a levaram ao crime quase sempre está a miséria ou a drogadição, que as levaram a buscar o sustento para a família ou que as aprisionaram, antes do cárcere, em um vício que não conseguiram se desvencilhar.
Seus lamentos se convertem em lágrimas, em lembranças e na promessa comum. Todas querem sair. Todas, apesar de presas, querem ser mães.
* OS NOMES FORAM TROCADOS PARA PROTEGERA IDENTIDADE DAS DETENTAS