Nada mais mutável do que o passado imutável. Eis uma assertiva que, apesar de ter ares de paradoxo, por mais incrível que possa parecer, se presta, sobremaneira, para o nosso entendimento do que é história. Evidentemente que história, nesse caso, ainda que nem todos se apercebam do fato, é um vocábulo aplicável exclusivamente ao passado humano. E nesse particular se caracteriza pela ambiguidade de, ao mesmo tempo, ter de refletir, por um lado, o conjunto dos acontecimentos do passado, a chamada história objetiva, e, por outro, o relato desse passado, que é feito pelo historiador.
O passado, tudo aquilo que ocorreu antes de nós, exatamente por ter passado, não é mais acessível. E nem será nunca em sua plenitude. Mas, invariavelmente, desse tempo passado, sobraram vestígios, documentos, monumentos, memórias, etc., que tendo escapado da sanha destruidora do tempo e dos homens, podem ser usados pelos historiadores para a sua reconstrução histórica. É por isso que se diz (ou há quem diga) que a história é uma ciência baseada em conjecturas, não se podendo negar, até em razão disso, que as reconstruções históricas sempre serão carregadas de um certo grau de incerteza.
Ainda, as reconstruções históricas sempre são parciais. Alexandre Koyré, no antológico ensaio “Perspectiva da história das ciências”, publicado em 1963, insiste que o historiador nunca conta tudo, nem mesmo tudo o que sabe ou poderia saber. O historiador contas apenas o que é importante (ou o que ele julga importante). A história objetiva, até por ser na sua totalidade desconhecida, passa à margem da história do historiador. Ou seja, invariavelmente, a história do historiador depende de escolhas. E, diga-se, de escolha dele, historiador, e de seus contemporâneos ou sucessores imediatos. É o poder discricionário do historiador que define, mais tarde ou muito mais tarde dos acontecimentos, o que considerar, na herança de vestígios recebidos, merecedor de ser preservado, em função de julgamento sobre a importância relativa de fatos e de valor de documentos que tem acesso.
E mais, ainda que, admite-se, pode não ser percebido sequer pelo próprio historiador, esse, invariavelmente, projeta, na história que narra, os interesses e a escala de valores do seu tempo, em conformidade com as ideias do seu tempo, e, não se ignore, também com base nas suas próprias ideias. Eis a principal razão de a história se renovar de tempos em tempos e de justificativa para a assertiva de que nada muda (ou pode mudar) mais rapidamente do que o imutável passado.
Tudo o que foi dito até aqui se presta, sem qualquer sombra de dúvida, para a revisão legitima da história. Acontecimentos do passado podem sim ser analisados e revisados à luz de novos dados e pelo uso de teorias e metodologias mais robustas. Mas, evidentemente, não se presta para justificar revisionismos de ocasião, que não fazem outra coisa que não seja a negação de acontecimentos sobejamente conhecidos, pelo uso político da história e da narrativa de historiadores engajados.
Admitamos que exista (e existe!) uma historiografia de Passo Fundo bem consolidada. As obras de Francisco Antonino Xavier e Oliveira, O Pai da História de Passo Fundo, Delma Rosendo Ghem, Jorge Edethe Cafruni, Pedro Ari Veríssimo da Fonseca, Paulo Monteiro, Ney Eduardo Possapp d´Avila e a produção acadêmica do Programa de Pós-Graduação em História da UPF montam um legado valioso sobre a história local e regional. Então, se reunirmos todos esses livros, monografias, dissertações e teses, fazendo uma justaposição pura e simples desses conteúdos, teremos A HISTÓRIA DEFINITIVA DE PASSO FUNDO? Lamento, mas a resposta é não. O todo é maior do que a soma das partes. A coleção dessas obras não forma a história de Passo Fundo. Inclusive muitas delas, especialmente as de cunho memorialista, diante do acesso às fontes primárias que se embasaram os nossos historiadores do passado, podem, legitimamente, sem que isso signifique revisionismo histórico, darem margem a novas interpretações da história local.