"Você pode aguardar uns minutinhos enquanto eu termino de fazer a avaliação dele, por favor?" O pedido feito pelo policial rodoviário, Vitor Hugo Mazzoca, assim que chegamos ao Clube de Tiro e Caça de Passo Fundo (CTCPF) foi pontual. Orientando um senhor que se direcionou ao local para realizar a prova que o atestaria apto ou não para a compra legal de uma arma de fogo, o também vice-presidente do clube o guiou até a linha de tiro. Com o alvo à frente e os quadrantes que contabilizam a pontuação, conforme o local em que o postulante acerta os disparos, ele observa atento. "Ele reprovou", sentencia. "O critério fundamental é segurança e ele quebrou uma regra básica naquela hora em que eu pulei na arma", justifica, referindo-se ao momento em que, mesmo com a arma descarregada, o candidato abaixou-se para recuperar unta cápsula de bala que caiu ao chão apontando, involuntariamente, a arma para quem estava atrás. "Quem determina se uma pessoa é apta ou não para ter uma arma em casa são os avaliadores. Para ver como a coisa é séria. Quem compra unta arma tem que saber usar", explica.
As margens da BR-285, a sede do clube quase não é percebida por quem trafega em direção a Carazinho. Com um quadro de sócios estimado em 260 pessoas, entre caçadores, atiradores e colecionadores, o local recebe competições a nível estadual e nacional de Tiro Esportivo. "São profissionais da área da saúde, empresários. Em geral, pessoas de classe média a classe média alta porque é um esporte caro para manter", revela Mazzoca. Chamada de 'joia', de acordo com ele, a associação custa, em média, R$ 1.800,00. "Pode parcelar. Enquanto a pessoa estiver pagando a joia, não precisa pagar a mensalidade de R$ 60,00", continua.
Percorrendo o amplo gramado do clube, ele mostra a estrutura oferecida para os frequentadores. "Aqui na 'bala', conto costumamos chamar, é de duelo 4x20. Ele consiste em deixar o alvo exposto por 20 segundos, depois ele fica de perfil e o atirador não enxerga mais. São quatro vezes que ele vai abrir e serão dados 5 tiros por série, totalizando 20 tiros", menciona. Nos estandes circundados por pneus de caminhão preenchidos com materiais utilizados na construção civil, cuja função é "parar" os projéteis de diferentes calibres, assim que disparados pelos atiradores, Mazzoca esclarece que o armamento utilizado para a prática esportiva não é fornecido pelo clube. A arma utilizada para o teste de aptidão do homem que não atingiu o desempenho necessário, inclusive, era do vice-presidente. Segundo ele, cada indivíduo chega portando sua arma, conforme os calibres permitidos pela portaria federal. "Nós tratamos em questão de joule [elemento utilizado para medir a energia emitida pelos disparos]. Então, os calibres permitidos vão até o .44, mas não o Magnum. Os únicos que, já pela nova resolução, não entrarão conto permitidos serão o .44 Magnum, o 454 e os fuzis, sem dúvida, que já são calibres restritos", enumera.
O policial elenca, ainda, uma série de necessidade legais para frequentar o espaço e, de um modo geral, portar uma arma. Entre elas, o registro do armamento junto às Forças Armadas e ser um indivíduo "sem passagens pela Justiça", como menciona, são obrigatórios e comuns a todos os membros. Pelo novo decreto assinado pela Presidência da República, o registro para os caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) deve ser elevado de três para 10 anos. A compra de munições também deve subir. O teto passará de 50 cartuchos anuais, por arma, para 5 mil, e mil para as de uso restrito. "A compra de arma é rígida também para os atiradores. Eles têm de estar na linha", declara.
Com a mesma idade do clube que integra a gestão, Mazzoca conta que começou a praticar o esporte de tiro ainda na década de 70, associando-se quase dez anos depois. Os gastos mensais para manter o espaço com cerca de 5 estantes de tiro, segundo ele, gira em torno de R$ 8 a R$ 10 mil reais, distribuídos em impostos, contas gerais e salários dos três colaboradores que mantêm o lugar em funcionamento. Frequentado semanalmente, sobretudo, por homens, Mazzoca revela que a presença das mulheres como praticantes de tiro tem sido uma crescente ao longo dos últimos anos. "Temos, inclusive, uma campeã brasileira da modalidade doble que treina aqui", orgulha-se. "Menina dos olhos" de todo atirador associado ao Clube de Tiro e Caça de Passo Fundo, conforme informou, o estande fica na área superior, próximo a um local social com mesas de sinuca, lareira e churrasqueiras, utilizado às quartas-feiras para confraternização.
"O atirador dá um comando de voz e são lançados dois pratos ao mesmo tempo. Então, ele atira em um e busca o outro", indica. "As armas são caras para comprar aqui por causa das taxas de importação. Só a parte documental, para ter o registro de posse, custa, em média, R$ 700. Tem armas que não consigo nem mensurar o valor", pondera. Utilizado também como local familiar, o clube de tiro, segundo ele, também possui uma área voltada aos menores de idade que, com o aval de um responsável, praticam a modalidade. "Com uma arma de ar, pode atirar. Não há nada que seja impeditivo. Agora, arma de fogo não porque o Estatuto da Criança e do Adolescente veta", menciona. "Temos uma moça de 16 anos que já é uma exímia atiradora", prossegue. Para ele, o novo decreto para a posse e porte de armas é visto de forma positiva. "Nós temos que ter o livre-arbítrio. E, no tocante a arma, nós não temos. Você pode comparar um caminhão, se quiser, mas não pode comprar um revólver. Por quê?", questiona "Não é arma que mata, ela é só um instrumento. Nos foi tirado o direito à proteção porque a arma é para proteger. 'Chore a mãe dele, mas não chore a minha', como diz o ditado. Mas, para matar não é necessário arma de fogo porque, quem quer matar, mata com um bastão ou com qualquer outra coisa", defende.
Flexibilização do porte de arma reacende discussão sobre segurança
Entre assinaturas, alterações nos textos e recuos, desde que o presidente da República, Jair Bolsonaro, sancionou o último decreto de flexibilização da aquisição de armas de fogo e munições, em maio deste ano, a ampliação na circulação destes artefatos tonificou os debates entre opositores e aliados sobre os reflexos que a resolução pode provocar quando for colocada em prática. Embora celebrado pelos apoiadores, o cumprimento de uma das principais promessas de campanha presidencial preocupa os especialistas em segurança pública. Com respaldo de outros estudiosos da área, para o professor de Direito Penal da Universidade de Passo Fundo (UPF), Luiz Fernando Pereira Neto, a medida pode intensificar o índice de violência no país. "Nunca se morreu e se matou tanto no Brasil como agora, antes mesmo dos decretos serem assinados", considera, recorrendo às estatísticas apontadas pelo Atlas da Violência, divulgado na quarta-feira (5) pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), para embalar sua análise.
Segundo o relatório mencionado por Neto, o número de brasileiros mortos por arma de fogo cresceu 39% no período que compreende os anos 2007 a 2017. Somente nesse último ano observado pelos pesquisadores, 72,4% dos homicídios registrados no país foram cometidos com a utilização do artefato. "Somos muito mais permissivos à posse de armas, só que tinha controle. Isso [o decreto] flexibiliza esse controle", assegura o professor, esboçando um comparativo entre o Japão e os Estados Unidos. "O Japão adota uma tolerância zero enquanto que, nos Estados Unidos, a compra de armas não é tão restrita", pondera.
No último decreto presidencial, assinado em 22 de maio, além de vetar o porte de fuzis, carabinas e espingardas para o cidadão comum, o texto manteve a facilitação do porte de armas para algumas categorias profissionais, como caminhoneiros, jornalistas que cobrem o setor policial e advogados. O texto, publicado no Diário Oficial da União, as considera como "atividades profissionais de risco" e justifica a resolução para o uso permitido quando "o indivíduo esteja inserido em situação que ameace sua existência ou sua integridade física em razão da possibilidade de ser vítima de delito que envolva violência ou grave ameaça", ratifica o parágrafo quinze do decreto.
"A segurança pública tem que ser prestada pelo Estado. A possibilidade ou não de uma complementação dela é outra coisa a ser debatida porque falar sobre armamento não é uma tarefa fácil", considera Pereira Neto. Para o professor de Direito Penal, essa responsabilidade da União não pode ser transferida para o cidadão, porém é delegada por ele "não acreditar no Estado." "A nossa mentalidade é diferente. O brasileiro resolve, culturalmente, os seus problemas com violência, sendo legal ou não o porte", avalia. A flexibilização nas leis para as armas, questionada pelo especialista, sofre repúdio de uma ampla parcela da sociedade. De acordo com o levantamento divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 73% dos entrevistados são contra a medida proposta pelo Governo Federal enquanto 26% se mostraram favoráveis. Realizada em março, a pesquisa apontou ainda que 61% são contrários à facilidade para possuir uma arma em casa. "Também é direito do cidadão cobrar do Estado uma segurança maior", argumenta o professor de Direito Penal, Luiz Fernando Pereira Neto.