Diante do problema de moradia, que inclui 72 ocupações em Passo Fundo, a Secretaria de Habitação vem estudando uma alternativa para reassentar as famílias carentes que estão em terrenos irregulares – como as Áreas de Preservação Permanente (APP), por exemplo. De acordo com o secretário da pasta, Paulo Caletti, há algumas regiões do município que despertam o interesse de empreendedores, mas que precisam passar por alterações no zoneamento do Plano Diretor. Como o processo de revisão leva tempo, em virtude das etapas e discussões, a ideia é antecipar estas alterações discutindo algumas contrapartidas, como a doação de um percentual das áreas para serem destinadas ao reassentamento das famílias.
A justificativa é que, em virtude de o processo ser demorado, os investidores percam o interesse nos empreendimentos. A doação e as mudanças no zoneamento, que está em fase final de apreciação pelo Executivo, seriam viabilizadas por meio de um Projeto de Lei encaminhado ao Legislativo. Se concretizado, o plano representaria um fôlego ao poder Executivo, conforme Caletti.
Está é uma das estratégias encontradas pelo Município diante da falta de recursos necessários para solucionar os problemas envolvendo a moradia na cidade. De acordo com o secretário, a Prefeitura fica na “ponta do problema”, já que as políticas habitacionais são centralizadas pelo Governo Federal. A partir de 2012, em virtude da crise econômica, o aporte financeiro destinado a tais programas começou a ser reduzido. O estado gaúcho também não destina recursos para o setor. Sem investimento, a situação piorou em Passo Fundo.
O Município ainda busca alternativas com parcerias público-privadas. Em 2017 e 2019, por exemplo, foram elaborados dois protocolos de intenção com construtoras para a construção de em torno de quase 900 moradias, nas duas ocasiões, de diferentes faixas do programa Minha Casa Minha Vida. Em torno de 4,2 mil famílias estão na fila por uma habitação. Destas, cerca de 1,4 mil são da Beira Trilho. Outras 1,5 mil, que estão neste cadastro, moram em ocupações, conforme o secretário.
A questão das ocupações irregulares cria um problema que envolve várias áreas. Por um lado há a preocupação ambiental pela proximidade das moradias com recursos hídricos e as instalações sanitárias irregulares. Por outro, envolve uma questão social, já que no local estão famílias carentes e cujas vidas estão em risco em virtude de tais instalações.
Situação complexa
A urgência de solucionar o problema da moradia também é um reflexo do número de ações que são discutidas na Justiça e cujas famílias precisam ser reassentadas. Segundo levantamento da Secretaria de Habitação, aproximadamente 500 famílias vivem em APPs. Há áreas de preservação (APP) em 19 ocupações, das 72 existentes em Passo Fundo.
O presidente do Grupo Ecológico Sentinela dos Pampas (GESP), Paulo Fernando Cornélio, cita três casos que ilustram a os impasses envolvendo as ocupações. Todos os casos estão em discussão na Justiça e aguardam soluções.
A primeira delas é com relação ao Parque Municipal Pinheiro Torto, uma Unidade de Conservação (UC). No local, há em torno de 20 famílias carentes morando de maneira irregular. A situação do Pinheiro Torto é alvo de Inquérito Civil instaurado pelo Ministério Público em 2015. “O problema é grave porque há plantio de soja e ocupação de famílias em uma área que é um Parque Municipal. Essa área foi destinada para uma ocupação diferenciada tanto de preservação ambiental, inclusive por estar próxima da Reserva Maragato, que é uma RPPN (Reserva Particular do Patrimônio Natural) fundamental para nossa cidade dada a grande quantidade de mata nativa existente nela”, analisa o promotor de Justiça Paulo Cirne, responsável pelo inquérito. Na Justiça já corre uma ação de reintegração de posse, movida pela Prefeitura. De acordo com o secretário, o Município deve reassentar as famílias carentes que estão em APPs. O parque está localizado no bairro Valinhos e possui 31,88 hectares.
A segunda situação envolve um conjunto de famílias que mora no Loteamento Jardim Primavera, na Rua Manoel Portela. Elas estão próximas ao Rio Passo Fundo e correm risco. No local há histórico de desmoronamento. Em 2005, uma casa cedeu após uma noite de intensa chuva e uma família ficou desabrigada. O fato foi noticiado pela imprensa e motivou a abertura de um inquérito do MP para averiguar a situação.
Conforme Paulo Cirne, várias medidas foram solicitadas à Administração Pública e diante da ausência de solução, o MP ingressou com uma ação civil pública contra o Município. O caso tramita na 1ª Vara da Fazenda Pública de Passo Fundo, e ainda não teve julgamento. Algumas audiências conciliatórias foram feitas. Conforme o promotor, a expectativa é que as famílias que estão em situação de risco e as que ocupam áreas irregulares, sob o ponto de vista ambiental, sejam realocadas.
Por fim, há a situação de uma das ocupações do bairro Alexandre Zachia. No local, há famílias morando em APPs, seja em área de banhado ou as margens do Rio Passo Fundo. Na Justiça de Passo Fundo correm ao menos dois processos envolvendo a área. Em março, uma audiência conciliatória foi realizada com as partes.
Diante de algumas dúvidas porque na ocupação há terrenos do Município e também do Estado, onde estava prevista uma obra da Corsan, a juíza Rossana Gelain determinou prazo para que as partes envolvidas fizessem um levantamento topográfico, inclusive das APPs, para saber a quem pertence cada. Uma nova audiência está marcada para setembro, quando as informações devem ser entregues.
Conforme Paulo Fernando Cornélio, a situação do Zachia é expressiva porque está entre as ocupações com maior adensamento, o Pinheiro Torto é uma Unidade de Conservação e no loteamento Jardim Primavera as famílias correm risco em virtude da possibilidade de desmoronamento.
O que são APPs
De acordo com o Código Florestal (Lei nº 4.771/65), são consideradas áreas de preservação permanente (APP) aquelas protegidas nos termos da lei, cobertas ou não por vegetação nativa, com as funções ambientais de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade e o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas.
Mais recentemente, a Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012, trouxe dispositivos de proteção da vegetação nativa. As APPs, segundo essa legislação, são estabelecidas de acordo com a largura de rios ou cursos de água. Por exemplo, em rios de 10 metros de largura, os 30 metros de entorno são considerados Área de Preservação Permanente. O número vai aumentando em até 500 metros de APP para rios com largura superior a 600 metros. As APPs não se restringem a rios. A mesma lógica se aplica para lagoas, nascentes, reservatórios, entre outros.
Segundo a legislação, o proprietário, independente se pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, do terreno deve manter a vegetação na APP. A supressão ou intervenção na vegetação em Área de Preservação Permanente somente poderá ocorrer nas hipóteses de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental, previstas nesta Lei.
Preocupação ambiental
A principal preocupação e urgência, quanto à questão ambiental, é justamente em relação aos recursos hídricos, conforme Cornélio. De acordo ele, há estudos desenvolvidos pela pelo Plano de Bacia do Rio Passo Fundo e pela Corsan, que alertam para a falta de água no município nos próximos anos. Segundo ele, a vazão do Rio Passo Fundo e do Arroio Miranda é menor do que o volume de consumo. “Isso não quer dizer que vai faltar água, mas os recursos hídricos que sobrepõem para o consumo humano, a vazão deles é menor do que o volume de água que consumimos. Diante disso, vamos ter de buscar outros recursos hídricos para o consumo humano”, analisa. Tal medida iria aumentar o custo da água para o consumo.
O promotor destaca que a falta de tratamento de esgoto desencadeia diversos problemas ambientais. “Se iniciam pela construção em área irregular, que deveria ser preservada, depois essa construção é feita a partir de remoção de árvores sem licença e há o lançamento do esgoto para o recuso hídrico ou próprio banhado e por fim, como não há coleta de lixo organizada nos locais, muitas famílias, por problemas que não vem aqui relatar, acabam lançando seus resíduos ou nos recursos hídricos ou nas áreas de mata nativa que restaram”, pontua.
Precariedade das moradias
Mais de cinco mil famílias sofrem com a precariedade das condições de habitação, de acordo com o advogado e membro da Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo (CDHPF), Leandro Scalabrin. Segundo ele, são diversas as situações e perigos a que essas pessoas estão expostas diariamente.
As instalações precárias fazem com que falte água para alimentação e para o saneamento, a rede elétrica irregular oferece risco de incêndio, a falta de coleta de lixo facilita a proliferação de animais e doenças e ruas precárias faz com que muitas famílias fiquem ilhadas quando chove. “Já tivemos vários casos de casas queimadas, de pessoas que foram atacadas por cobras, escorpiões, que contraíram doenças por não ter saneamento e água tratada. Sem contar todos os trabalhadores que chegam em casa depois de um dia extensivo de trabalho e não tem água para cozinhar para suas crianças, não conseguem tomar um banho”, exemplifica Scalabrin. Também há risco de atropelamento em muitas das áreas próximas de rodovias ou da ferrovia.
Conforme o advogado, essas situações são permeadas por conflito de direitos, onde entram o direito à moradia das famílias, o direito ao meio ambiente e, no caso da Beira Trilho, o direito ao uso da ferrovia. “Nós da Comissão de Direitos Humanos pensemos que tem que ter uma compatibilização, que para conter a proteção ao meio ambiente, que deve acontecer, assim como deve ser garantido o uso de bens públicos, mas ao mesmo tempo isso só pode ser concretizar se houver uma garantia do direito a moradia das famílias que estão nessas situações irregulares”, argumenta Scalabrin.
Para os casos em que não é possível regularizar a área, a Comissão defende o reassentamento das famílias. Para os casos em haja a possibilidade de melhorar a qualidade ambiental sem retirar as famílias, conforme decreto municipal assinado na última semana, em que permite a regularização fundiária, que assim seja feito.
Recursos da união
Para o promotor de Justiça, o Município precisaria de um aporte de recursos do governo Federal para conseguir resolver o problema habitacional, que define como urgente. “O município sozinho dificilmente vai ter condições de desenvolver projetos habitacionais para suprir esses problemas dessas pessoas que já estão em áreas irregulares. Haveria necessidade de projeto habitacional do governo federal para que o município pudesse gradativamente ir resolvendo o problema das ocupações. Poderia levar alguns anos, mas se teria uma solução a médio e longo prazo. No entanto, sem o aporte de recurso e com o forte risco de que essas ocupações continuem ocorrendo em outros lugares, o futuro que se vislumbra para Passo Fundo é muito grave. Poderemos ter uma quantidade percentual muito grande de moradias totalmente irregulares. Sem acesso à coleta de lixo, tratamento de esgoto, gerando danos ambientais”, analisa.
Política habitacional
Caletti informa que o Município também aguarda o anúncio referente à nova política habitacional do governo Federal. Em abril, o ministro do Desenvolvimento Regional, Gustavo Canuto, declarou, na Câmara dos Deputados, que o programa Minha Casa, Minha Vida só tem recursos suficientes para até a metade do ano. Na ocasião, ele informou que a expectativa era enviar, até 8 de julho, uma proposta de alteração do programa.
Próximos anos
Paulo Cornélio é pessimista em relação à solução da questão ambiental em um curto espaço de tempo, mas vê com bons olhos a revisão do Plano Diretor. “Estamos colocando diversas propostas. Esperamos que sejam aprovadas para que possamos amenizar em longo prazo, porque algumas áreas de ocupações em APP já são absolutamente perdidas, consolidadas. Nós não vamos poder, em curto espaço de tempo, recupera-las. Principalmente na região do Bourbon, da Vila Popular, da Prefeitura. Mas nós estamos colocando algumas propostas para amenizar que são os parques lineares áreas em que há recursos hídricos. O objetivo é preservar as APPs”, enfatiza.
Para o promotor de Justiça, a perspectiva é ruim. “Eu acredito que as ocupações vão continuar acontecendo e as áreas que nós temos livres, via de regra, não estão ocupadas justamente porque são APPs em sua boa parte. Embora eu acredito que há uma preocupação dos administradores em dar atenção a esse problema”.
Projeto coletivo
De acordo com Leandro Scalabrin, é preciso pensar em viabilizar um projeto habitacional. “Seria urgente que Passo Fundo pensasse um grande projeto de captação de recursos para solucionar o problema de moradia dessas cinco mil pessoas da cidade, tal qual houve uma grande mobilização em torno de um grande projeto para o desenvolvimento da cidade em razão da reforma do aeroporto, para captação de recurso para fazer isso”, pondera.
Conselho consultivo do Parque Pinheiro Torto
O Parque Pinheiro Torto foi tema de reunião realizada na noite de quinta-feira, na Universidade de Passo Fundo (UPF). O encontro contou com a presença de representantes do poder público, diversas entidades e da comunidade que vive na Ocupação Valinhos II. O objetivo da reunião foi discutir a construção de uma minuta para criação do Conselho Consultivo do Parque. A área é uma unidade Natural Municipal Pinheiro Torto é uma Unidade de Conservação localizada no bairro Valinhos, possui 31,88 hectares e tem como objetivo principal preservar os ambientes naturais.
De acordo com a coordenadora do Centro de Ciências e Tecnologia Ambientais (CCTAM) da UPF, professora Elisabeth Maria Foschiera, a Universidade participou do Edital Chamamento Público 05/2018 do Fundo Municipal do Meio Ambiente em que o objetivo era a constituição do conselho consultivo do Parque Pinheiro Torto. “O parque é um espaço público, é uma área significativa de mata Atlântica, muito importante para o município, então, todas as entidades ambientais – tanto governamentais quanto não governamentais – lutam há muitos anos para que essa área de fato se constitua como um espaço de preservação permanente”, explicou.
De acordo com o secretário municipal de Meio Ambiente, Rubens Astolfi, o parque foi criado em 2011 e a partir de então foram iniciados os trabalhos de gestão da área, com a criação de um Plano de Manejo em 2015. “A área tem alguns objetivos principais, um deles é que ocorra a preservação ambiental da biodiversidade e do bioma; outro objetivo é a elaboração de pesquisas científicas, e o terceiro é para que ocorra a preservação ambiental de forma efetiva”, explicou o secretário.
Segundo a moradora da Ocupação Valinhos II e membro da Comissão dos Direitos Humanos de Passo Fundo Edivânia Rodrigues da Silva, é importante a participação da comunidade nas discussões envolvendo o Parque. “Acho que é importante possibilitar que esse povo participe do processo de formação para construir uma nova cultura. Acho que não se trata de quem ganha e de quem perde; é ver como todos nós ganhamos”, pontuou a moradora.
A próxima reunião do grupo ocorre no dia 10 de julho, quando será realizada a entrega da minuta ao Conselho Municipal de Meio Ambiente.