Famílias têm prazo de 30 dias para desocupar residências

Justiça expediu mandado de reintegração de posse contra moradores de uma área na Vila Popular

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Mandado foi entregue na última sexta-feiraMandado foi entregue na última sexta-feira
Mandado foi entregue na última sexta-feira
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A 3ª Vara Cível da Comarca de Passo Fundo expediu um mandado de reintegração de posse em três áreas particulares localizadas no Loteamento Vila Popular, em Passo Fundo. Se contabilizados, os terrenos abrigam cerca de 60 pessoas residindo no local há mais de 30 anos. O despacho, emitido ainda em fevereiro deste ano, foi entregue pelo Oficial de Justiça aos moradores na última sexta-feira (5) comunicando o prazo de 30 dias para a desocupação da área.

A decisão em terceira instância foi mantida desde que as partes recorreram da primeira sentença, há cerca de um ano. No último parecer judicial, ajuizado contra 13 moradores da localidade, a determinação de desocupação dos lotes urbanos números 03, 04 e 05, paralelos à rua Havay e sem numeração definida, foi concedida pelo juiz João Marcelo Barbiero de Vargas, titular da Comarca de Passo Fundo. Segundo o texto-base, as propriedades privadas foram adquiridas através de herança comprovada pelos proprietários, residentes em Porto Alegre, através de três Certidões de Registro de Imóveis.
Ainda conforme o documento, em agosto de 2002, os treze moradores iniciaram um processo de ocupação dos terrenos “sem qualquer autorização dos proprietários”. “No decorrer dos três próximos meses, agravou-se a situação tornando-se insuportável a tentativa amigável no sentido de evitar tal invasão e diversos danos com construção de casas”, destaca um dos parágrafos do processo. No dia 22 de novembro do mesmo ano, prossegue a argumentação, um Boletim de Ocorrência foi registrado junto ao Centro de Operações da Polícia Civil. Segundo os herdeiros que solicitaram o processo de reintegração de posse das áreas, há consciência de que é “um assunto social irresolvido” e cuja “solução passa por uma decisão política municipal”, conforme alega o parecer. “Muito embora tenham nítida compreensão social da questão, por outro lado, tem obrigação de defender a posse dos três pequenos imóveis de sua propriedade”, reitera um dos trechos finais.
A decisão judicial, como afirmou o secretário municipal de Habitação de Passo Fundo, Paulo César Caletti, ainda não é de conhecimento da pasta. “A secretaria não foi notificada. Quando isso acontecer, vamos analisar o processo junto à Procuradoria Geral do Município e buscar um novo local para alojar provisoriamente os moradores”, assegurou. De acordo com ele, o órgão governamental não possui um lugar definido para o reassentamento. “Precisaremos, ainda, fazer o cadastramento das famílias nos programas habitacionais”, comunicou.
“Nós estamos sendo tratados como nada”
Em uma dessas 20 pequenas moradias do Loteamento Vila Popular, a costureira Lúcia Fernandes se apressa em buscar uma pasta de papel pardo contendo as duas ordens de reintegração de posse, uma cópia antiga de jornal que apontava a área, antes da construção das residência, como “foco de infestação do mosquito da dengue”, e demais papeis que julga relevante para o processo. Aos 42 anos e desempregada, ela conta fazer “pequenos reparos” em roupas para contribuir com o sustento do marido, diagnosticado com aneurisma cerebral e meningite, e do filho de 12 anos. Da costura de Lúcia, cerca de 500 reais entram no orçamento mensal da família para preencher os gastos básicos domésticos. “Eu tenho três filhos, mas só o mais novo mora comigo. Eu estou aqui há 20 anos, morando nessa casa que eu e minha filha compramos por R$ 30 mil da antiga proprietária”, revela.
Nas paredes de tijolo a vista, vários quadros de família se intercalam com o cimento ainda aparente e objetos religiosos. Próximo ao que foi projetado para ser a cozinha da casa, parte do teto já não existe mais e o sol que entra por uma das janelas do imóvel, é bloqueado por um pano improvisado que serve de cortina. “Eu criei todos os meus filhos aqui”, narra com a voz firme. “Nós precisamos nos unir e correr atrás porque vai chegar os 30 dias, eles vão vir e passar por cima das casas com as máquinas”, diz, temerosa.
“Eles vão ter que matar todos nós porque daqui nós não saímos”, complementa uma voz ouvida em meio ao barulho de obras em uma das ruas laterais da ocupação. Carregando consigo a história de quase todas as casas que foram erguidas nos terrenos do loteamento, a moradora Juraci Carvalho foi uma das primeiras a mudar-se com a família para a Vila Popular. “Na minha casa tem 11 crianças, entre filhos e netos”, revela enquanto acalenta nos braços o mais novo de todos eles. O pequeno Felipe, de dois meses, dorme tranquilo protegido do frio passo-fundense por mantinhas azuis. Do lado de fora da casa, mais dois pequenos brincam com os gatos e cachorros de estimação. “Simplesmente eles vieram e deixaram o papel de reintegração. As famílias não vão ser indenizadas. Nós estamos sendo tratados como nada. Vão tirar nós daqui e nos colocar aonde?”, questiona Lúcia. De acordo com ela, quando mudou-se para o espaço, tinha consciência sobre os mandados judiciais. “Desempregada, com os problemas de saúde do meu marido e com a minha antiga casa caindo, eu não tenho como construir ou pagar aluguel”, desabafa. “Dizem que o bairro é perigoso e tanta coisa mais, mas, em tantos anos, a gente cria um vínculo e conhece todo mundo. Eu não me vejo longe daqui mais”, atesta. Segundo a costureira, os próprios moradores, com o auxílio da Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo (CDHPF), farão um levantamento sobre o índice de crianças, gestantes, enfermos e demais residentes da ocupação Vila Popular para ser entregue à Secretaria Municipal de Habitação e ao prefeito municipal de Passo Fundo, Luciano Azevedo.

No início da tarde de segunda-feira (8), a coordenadora de Formação da CDHPF, Edivânia Rodrigues da Silva, esteve reunida com os moradores do zoneamento para fazer essa identificação. “Nós trabalhamos na perspectiva de identificar essas pessoas, saber quem são, no que trabalham porque o juiz não sabe como elas vivem. A Comissão faz a escuta e mediação, tanto no âmbito social quanto jurídico, para elas entendam e se organizem no coletivo”, explica. Segundo ela, nesta terça-feira (9), estão previstos os agendamentos de reuniões com a secretaria competente e Poder Executivo Municipal para analisar as partes processuais.

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A força de transformar pelo social
Em frente à casa da costureira Lúcia Fernandes, um pavilhão construído na área delimitada para desocupação recebe, em torno de 64 crianças do Loteamento Vila Popular e uma da Casa de Acolhimento para oficinas de capoeira, dança percussão e inclusão digital em turno inverso ao escolar. Através do Projeto TransformAção e TransformAção Arte, mantidos desde 2007 na localidade por cinco entidades católicas, elas têm aulas de educação ambiental em uma política que, segundo a coordenadora do projeto, irmã salvatoriana Inês Sartori, visa atender crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. “Há 10 anos, esse projeto atende o povo de Passo Fundo. O diferencial é que, desses que passaram pelo programa, 40 estão trabalhando. Eu nem consegui pensar direito sobre esse pedido de reintegração, é incabível, não vai poder acontecer”, assevera. “Eu disse que, uma alternativa, é cada morador fazer uma proposta [financeira] e ir pagando um pouco em cada mês”, sugere. “Nós não queremos nada de graça”, concorda Lúcia.

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