Talvez pudesse avaliar o brado do escritor Lázaro Ramos “Na minha Pele”, como grito de angústia, um chamamento urgente à ética humana, clamor à empatia, ou, enfim, apelo sério e inteligente à paz social. O horror cruento e psicológico que enlutou a história do Brasil no período da escravidão deixou um campo minado em todo seu território imenso. São como bombas em armadilhas que afrontam o respeito humano, encobertas pelo desatino da soberba racial, que explodem cotidianamente ferindo o âmago existencial da descendência negra africana. Esses estilhaços de estigma deplorável que exclui a maioria de nossa população de pele escura não podem ser mitigados.
Na pele
O autor descreve com viva percepção a renitência da desconsideração de brancos em relação aos negros. Os dados estatísticos falam sobre a falta de oportunidade em vivenciar o reconhecimento à estética negra, alijada do trabalho, habitação e saneamento. Mais distante ainda são “os postos de comando” na sociedade que se diz livre. Lázaro expressa em frases lúcidas o quanto nossa civilização continua perdendo pelo alijamento dos filhos de Agar, dignos e brilhantes. Impossível ler os passos deste precioso livro, sem abraçar o sentido tocante da verdade. Não se trata de obsequiar nossos irmãos negros ou pardos, mas é o absolutamente justo reconhecimento igualitário. Os resquícios do racismo, disfarçados ou não, retardam a construção do ambiente de felicidade a todos nós que sabemos sermos um povo só. A sensação é de que Lázaro elaborou desejo legítimo e inadiável, quase utópico, mas com apelo acima do bem e do mal.
Na sua frase final, resume a crença que se faz esperança: “Exercite o olhar, sem preconceber nada. E seja feliz”.
Hernandez
O ícone das américas na literatura mundial, que atravessou os séculos, Jose Hernandez (in Martin Fierro) expressa em vários de seus versos o alerta contra a mesquinhez cultural humana: “Cuentan que de mi color/ Dios hizo al hombre primero;/ mas los blancos altaneros,/ los mesmos que lo convidan,/ hasta de nombrarlo olvidan/ y sólo lo llaman negro”. A mediocridade sonega valores inquestionáveis individuais e coletivos, por posturas socialmente injustas. A sôfrega ação aparente vem despida do merecido reconhecimento que deveria ser enxergado e sentido perante a personalidade individual.
Milton Santos
O cientista geógrafo Milton Santos, precocemente falecido, foi personalidade das mais respeitadas na cultura contemporânea. São lúcidas e atuais suas obras escritas. Este escritor negro, que tive ocasião de entrevistar no final dos anos 90, deixou à nação também a instigante literatura de cunho social e comportamental “Como é Ser Negro no Brasil”. Ao mencionar uma palestra de Milton, Lázaro lembra que “o brasileiro não tem vergonha de ser racista, e sim de dizer que é racista”. Esta é a face oculta que precisa de ruptura.
O cidadão
Roberto Mangabeira ataca o modelo vigente de dominação oligárquica dizendo que o grande perigo que ronda o Brasil não é o autoritarismo, é a perpetuação da mediocridade. A mentalidade discriminatória que afeta a população brasileira é inibidor de sonhos. Para que possa pulsar o desenvolvimento de todos, é preciso enxergar a legitimidade de prosperidade social a partir do sentimento igualitário. Assim nasce a força para realização.
Revelar valores
Lázaro Ramos fala das próprias raízes com franqueza. Invoca com desvelo e senso de realidade a importância das referências da cultura negra. E são abundantes as vertentes que conferem o esplendor negro. É preciso contar esta história e firmar olhar no seu presente efetivo. A arte, assim como é o pensamento forte da negritude, é elo de comunicação hábil na apresentação de verdades, ainda invisíveis.
Mudanças
A beleza notável, de forma e conteúdo, nos canais de mídia no simples olhar fraterno devotado à força negra é muito importante. Basta ver e sentir esta verdade que merece a pressa feliz e a ventura dos que podem enxergá-la.