Uma caminhada que se prolonga até os pés conseguirem suportar o peso do corpo. Com sorte, enquanto uma das mãos segura os poucos pertences de vestuário, a outra ampara uma ou duas crianças. Até cruzar a fronteira que delimita os territórios de Santa Elena de Uairén, na Venezuela, e Pacaraima, em Roraima, porém, o trajeto se apresenta como uma rota de violações físicas e insegurança. Esse cenário de diáspora foi relatado pelo chefe de Interiorização da Força Tarefa Logística Humanitária Brasileira, Cel. Augusto Souza Coelho, a empresários, autoridades políticas e educacionais de Passo Fundo durante cerca de 40 minutos, na Associação Comercial, Industrial, de Serviços e Agronegócios (ACISA), no final da manhã de quarta-feira (21).
Em um aceno à abertura de uma linha de diálogo para apresentar a Operação Acolhida – instituída em fevereiro de 2018 pelo então presidente Michel Temer como uma força-tarefa humanitária, coordenada pelo Exército Brasileiro, para amparar os imigrantes venezuelanos em deslocamento forçado –, o militar articulou os objetivos do processo de interiorização desses solicitantes de refúgio e sinalizou a possibilidade da vinda de mais alguns venezuelanos para Passo Fundo, caso haja um respaldo socioeconômico e empregatício na cidade. “Ordenar a fronteira até não é tão difícil, mas abrigar é muito caro”, menciou. Desde que o fluxo migratório se estendeu para outros estados brasileiros, em abril do ano passado, cerca de 1200 venezuelanos encontraram abrigo em cidades do interior gaúcho, como Tapejara e Chapada. “O Brasil recebeu menos imigrantes que os países mais próximos à Venezuela. A Colômbia recebeu 1,4 milhões de venezuelanos e o Peru, 800 mil”, comparou o coronel. O Estado Brasileiro já ofereceu assistência, conforme mencionou, a 190 mil cidadãos em movimento involuntário causado pelo regime ditatorial do presidente Nicolás Maduro.
O quadro vivo exposto pelo militar também se desenha nos relatórios da Organização Internacional para Migrações (OIM), vinculada à Organização das Nacões Unidas (ONU). Dos quase 5 mil venezuelanos interiorizados, no início deste ano, 18,5% tiveram o Rio Grande do Sul como destino. “Sendo uma força-tarefa logística e humanitária, queremos promover uma interiorização sustentável com desenvolvimento socioeconômico”, apontou Souza Coelho. Passo Fundo, assim como Caxias do Sul – cidade percorrida por ele antes de chegar à Capital do Planalto Médio – apresenta potencial de desenvolvimento para acolher a demanda dos refugiados. “Nós temos um banco de dados de emprego com cadastro, busca de vagas e logística. Quando eles entram no Brasil, recebem toda a documentação e, quando vocês nos acionam dizendo que há uma vaga, nós fazendo a movimentação territorial do imigrante para que ele tenha condições de se estabelecer”, explicou o coronel, dirigindo-se aos empresários. A meta estipulada pelo departamento no qual atua é interiorizar 3 mil venezuelanos, em agosto, através de voos domésticos comerciais ou com o auxílio do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) nos aviões da Força Aérea Brasileira (FAB). Até domingo (25), mais 77 refugiados devem chegar ao estado. Onze deles a Passo Fundo, conforme membros da Agência Humanitária da Igreja Adventista do Sétimo Dia (ADRA), que também atua na assistência aos venezuelanos.
Fonte: Organização Internacional das Migrações (OIM)
O refúgio tem rosto e endereço
Embora o perfil dos imigrantes e refugiados seja “diverso”, como explicou Souza Coelho, o primeiro relatório de Monitoramento do Fluxo Migratório Venezuelano, elaborado pela Agência das Nações Unidas para as Migrações, apontou que 71% das pessoas que cruzaram a fronteira entre os dois países, de janeiro a março do ano anterior a esse, tinham entre 25 a 45 anos; 48% era homens e 41% dos deslocados venezuelanos eram mulheres. Na qualificação escolar, 51% dos imigrantes entrevistados pelos voluntários possuíam ensino secundário e 26% concluíram o ensino superior. “67% dos migrantes deixaram seu país por motivos econômicos e laborais, e 22% por falta de acesso a alimentos e serviços médicos”, mostrou o documento. “Em torno de 10% da população venezuelana saiu do próprio país. 30% dos acolhidos, no Brasil, são crianças”, salientou o coronel do Exército Brasileiro, Augusto Souza Coelho.
“Nem em cenário de guerra você encontra algo tão desolador”, conta o militar, referindo-se aos alojamentos instalados pelo Ministério da Defesa e pelas cerca de 95 agências internacionais de proteção e direitos humanos e entidades religiosas que servem como moradia temporária para as famílias, nas cidades de Boa Vista, Pacaraima e Manaus. A interiorização serve, portanto, como uma medida de alívio aos estados do Norte para integrar as pessoas que buscam, em território brasileiro, um lugar seguro para viver. “Uma das coisas que aprendi com os organismos internacionais é que enquanto o imigrante tiver fome, ele caminha”, pontua. O coronel considerou, ainda, que 550 venezuelanos passam, diariamente, pelo posto de triagem da Polícia Federal em Pacaraima. “Dos 250 que solicitaram refúgio ou residência temporária, 220 não desejam abrigo porque se deslocam para países como Argentina e Uruguai. É mais fácil para eles por causa do idioma”, considera.
As múltiplas faces do refúgio que se apresentam para membros da Segurança Nacional e entidades da sociedade civil, nessa nova onda migratória na América Latina, também possuem endereço, ainda que transitório. O parecer da OIM mostrou, ainda, que 75% dos venezuelanos que ingressaram no Brasil pelo estado de Roraima tinham como local de natalidade as províncias de Bolívar, Monagas e Anzoátegui, assim como a família Villarroel Martes.
“Quando não havia comida, eu colocava sal na boca”
No andar de cima da casa com paredes rosadas, construída na Vila Luiza e protegida por uma grade branca de metal, a sala de estar do auxiliar de serviços gerais Alfredo Castillo se transformou em um corredor de colchões que amortecem os saltos do pequeno Fernando Villarroel Martes, de seis anos de idade. No sofá, transferido para o canto oposto às camas improvisadas, o casal Francellys Villarroel, de 27 anos, e Jesus Martes, de 28, desviam das inúmeras sacolas que se amontoam em cima dos móveis.
Aos poucos, as doações de roupas e utensílios domésticos vão se acomodando desde que o casal saiu do estado de Anzoátegui, distante 515 quilômetros da capital Caracas na Venezuela, e percorreu junto aos três filhos, Antoniellys, de 10 anos; Roxibeth, de 9, e do caçula de olhos desconfiados que continua a brincar no quarto-sala, o mesmo caminho de 4 milhões de venezuelanos forçados a sair do país pelas condições econômicas e isolamento diplomático imposto pelo governo Maduro. Desde o último domingo (18), a família Villarroel Martes está em um processo de adaptação e reconhecimento da cidade de Passo Fundo, quando foram acolhidos por Castillo. Há 9 meses no município, o venezuelano abriu as portas de casa para acolher a família da sobrinha. “É difícil separar-se. Meus pais ficaram na Venezuela, mas estão felizes porque sabem que viemos para um lugar melhor”, avalia Francellys.
Ao lado do marido, Jesus, ela narra as adversidades e instabilidades com a qual conviviam até a tomada da decisão de sair da pátria apenas com algumas peças de roupa. “Com o salário mínimo, conseguíamos comprar apenas mandioca e sardinha, nem sempre podendo comer mais que duas vezes por dia”, relembra. Os filhos, como comenta, não frequentavam a escola em alguns dias porque não havia professores ou não estavam alimentados para cumprir a jornada escolar. “Quando não havia comida, ou tomávamos água ou eu colocava sal na boca”, completa Jesus, que trabalhando na mineraria, recebia 2 dólares pelo trabalho.
O salário mínimo, anunciado pelo presidente Nicolás Maduro na quarta-feira (21), equivale a 2,75 dólares ou 40 mil bolívares venezuelanos. Na conversão cambial, R$ 11,15 reais é o pressuposto financeiro básico no país de origem dos Villarroel Martes. A inflação vai chagar a 10.000.000% em 2019, como estima o Fundo Monetário Internacional (FMI). “Aqui é um lugar melhor, as pessoas são carinhosas”, expressa, com um sorriso.