Das melhores produções já lançadas pela NETFLIX, “Mindhunter”, que chega à sua segunda temporada – lançada na semana passada na plataforma – é um produto atípico para a própria NETFLIX em termos de qualidade. Ela é superior em muitos aspectos à maioria das produções feitas para o streaming. Não é difícil entender o motivo quando se vê o nome de David Fincher (Se7en, Clube da Luta, A Rede Social) na co-produção e direção de alguns episódios, tanto na primeira como nessa segunda temporada. “Mindhunter” exibe as digitais de Fincher, um dos grandes diretores norte-americanos das últimas décadas, em cada plano, em cada opção narrativa, em cada cor desbotada da fotografia.
A segunda temporada da trajetória dos agentes Holden, Tench e Wendy é uma evolução gigantesca para uma série que, já na primeira temporada, era superlativa. A história acompanha o surgimento da Ciência do Comportamento no FBI, quando agentes e psicólogos começaram a estudar mais de perto a mente de psicopatas e serial killers para entendê-los e, assim, ajudar a prevenir e resolver casos semelhantes – e a temporada inicial já dizia os rumos que a série tomaria, quando Holden, o grande responsável pela ideia que conduz a divisão de ciência, começa a se perturbar ao perceber que tem mais em comum em certos aspectos aos psicopatas que entrevista do que gostaria de ter.
Depois de colocar os personagens em contato com diferentes assassinos famosos na história do FBI, a segunda temporada muda um pouco o foco e passa a orientar o olhar do público não para os assassinos em si, mas para quem os persegue. E é aí que a série dá um salto ainda maior de qualidade: ao acompanhar a caçada a dois assassinos em particular, o “assassino BTK”, que começou a fazer vítimas nos anos 70 e cuja história é mostrada em flashes no começo de cada episódio, e o desaparecimento de crianças negras que apavorou Atlanta entre 1979 e 1981. Mas o foco da série não está na caçada em si, que põe à prova as convicções dos agentes em torno da criação de perfis para definir suspeitos e ignorar pistas, coisa que a polícia da época não conseguia entender. O grande foco está na maneira como a narrativa equilibra as trajetórias pessoais dos agentes em meio ao próprio trabalho: as perturbações de Holden com sua simpatia por certos aspectos dos assassinos, os segredos que Wendy precisa esconder da sociedade ou o drama vivido por Tench com questões familiares que o fazem repensar e dar um novo peso ao próprio trabalho e à constatação do quando a criação e o ambiente familiar na infância afetam o desenvolvimento da personalidade dos serial killers. Mais do que todos, é Tench o fio condutor dessa temporada, quando por motivos pessoais ele passa a questionar os resultados do próprio trabalho.
A habitual fotografia fria e desaturada das obras de Fincher é perfeita não apenas para o tema que desenvolve mas também para sublinhar o olhar crítico à própria sociedade americana da época, em que tensões raciais e sexuais espreitam em cada atitude que cerca os personagens. Se na primeira temporada um dos grandes méritos estava na forma como a câmera oferece comentários ao espectador pela maneira como aproximava ou afastava os personagens em suas conversas com os psicopatas na prisão, agora o destaque está na frieza com que estabelece as relações entre os agentes entre si e com seus familiares/namoradas. E, é claro, está em Damon Herriman, em um dos grandes momentos de atuação do ano ao personificar de forma fabulosa Charles Manson em uma única cena de conversa com os agentes que exemplifica boa parte dos conflitos da série: enquanto Tench olha para o psicopata preocupado e irritado por conta da própria história, Holden o contempla quase como um fã. E Manson, em seu discurso entorpecido, resume parte das ideias que assombram os personagens. É tênue a linha que separa as pessoas “comuns” das desequilibradas e são os detalhes que tornam os fantasmas de um maiores ou menores do que os outros. “Mindhunter” foge ao padrão das séries de investigação com ritmo e ação incessantes e ganha seus pontos pela construção dos personagens e um cuidado apurado nos aspectos da linguagem audiovisual.