Caminho lentamente em direção ao hospital para meu costumeiro plantão das quintas à noite. No trajeto, olho para o interior de um bar e vejo um sujeito que, sentado, olha o noticiário da TV sorvendo uma cerveja; vejo um casal de namorados aos beijos à espera do coletivo urbano; vejo dois caras fumando e discutindo sobre o jogo do Inter. Meu pensamento corre ao passado, exatamente ao dia 04 de fevereiro de 1976 quando resolvi que iria cursar a faculdade, decisão que mudaria a minha vida completamente. 1976, ano de Agepê e Guilherme Arantes; ano em que Jimmy Carter se tornou presidente dos States e Idi Amin, de Uganda; ano em que Isabelita foi apeada do poder na querida Argentina.
Talvez não tenha deliberado conscientemente sobre a escolha profissional; de maneira pretensa e arrogante chego a pensar que atendi a um chamado, a um comando; dizem por aí que não escolhemos a profissão, que ela nos escolhe e que há sinais indicadores para quase todas as “escolhas”; talvez haja. Uma vez médico, sempre médico, 24 horas por dia; talvez 25 horas por dia ou mais.
O fato é que nessa profissão há extrema doação pessoal ou houve doação. Porque a medicina mudou como o mundo mudou. Tornamo-nos tecnológicos e distantes, jogamos dados estatísticos ao computador, emprestamos cada vez mais às máquinas as decisões cruciais. O paciente é um número, uma espécie de CPF, um prontuário; ele não tem nome, tem um número, quem interage com os familiares é a enfermagem, muitas vezes. A clássica medicina humanitária defasou em relação ao novo: exame novo, medicamento novo, nova tecnologia. Muitas vezes ficamos sentimentalmente descompromissados em relação ao paciente, muitas vezes tratamos a doença e não o doente, submetemos à dieta severa ou tratamento oncológico severo e o sujeito morre do tratamento e não de sua patologia. O mundo mudou, dizem por aí e os médicos tecnológicos-virtuais parecem ter assumido essa “evolução” que trouxe a impessoalidade e a diminuição das ressonâncias humanas.
Talvez por isso, um médico sessentão como eu, olha para o bar, para a cerveja, para o casal de namorados e para a discussão de pequenas bobagens como o futebol; olha para isso tudo e para mais ponderações e pensa que poderia ter escolhido outra coisa a fazer na vida, como música, teatro ou salvar o planeta, as plantas e os animais, por exemplo ou simplesmente ter sido um vagabundo, ser errante e perscrutador como o Sócrates dos pés descalços, despossuído de valores materiais. Enquanto me afundo nas divagações senis, sobre a medicina que era e a que é, o mundo tecnológico me traz a minha realidade: a ligação do celular informa que um paciente me aguarda na emergência. Sei muito sobre ele, que está vivendo uma crise existencial, está aparentemente no fundo do poço e que me considera um porto seguro para dividir suas angústias. É hora de vê-lo e dele esconder a ebulição das minhas dúvidas; dele esconder o dia 04 de fevereiro de há 43 anos, quando deliberei ou deliberaram para mim, que essa era minha vida, minha missão e meu destino. Então, chega de frescura...é hora de colocar os pés no chão e bater o cartão-ponto.
Passo Fundo, 19.9.2019