A relação entre a administração pública e o servidor compõe um dos cenários mais complicados para a produção de um competente desempenho governamental. Duas razões, no mínimo, justificam esta afirmação: uma, é a cegueira recíproca; outra, é a ausência simultânea de motivação e de inovação.
Eu chamo de cegueira recíproca a invisibilidade que se cria, por um lado, pelo desvio de olhar do governo para a política institucional de recursos humanos, permitindo que práticas funcionais se enraízem, se acumulem e se perpetuem, sem qualquer acompanhamento, orientação, suporte, controle e construtiva correção; por outro, pelo verticalismo do servidor, que assume uma postura reduzida ao cargo que ocupa, sem “erguer a cabeça” para obter uma visão ampliada e horizontal do seu papel, desinteressando-se, inclusive, de objetivos institucionais. Assim, o governo não enxerga o servidor e o servidor não enxerga o governo, a cegueira se torna recíproca e os dois adquirem o sentimento de que um não depende do outro. O governo, então, alega que gasta muito com remuneração, o servidor não se sente valorizado, os dois se neutralizam, os resultados não acontecem e o governo e o servidor, desta forma, ficam expostos à indesejada crítica generalizada.
A segunda razão é decorrência da primeira, pois é pela cegueira recíproca instalada na relação do governo com o servidor que a ausência de motivação e de inovação se configura. Quando não há desafios, perspectivas, marcadores de conquistas e reconhecimento, não há motivos para fazer mais do que o mínimo, reproduzindo-se o que sempre foi feito, sem saber o porquê, para quem, qual é a consequência e qual é a repercussão. A ausência de inovação é consequência... A percepção que se fixa, junto ao servidor, é a de que basta fazer o que sempre foi feito, mesmo diante de demandas que exijam uma nova leitura de ação. Junto ao governo, a percepção é de impossibilidade de mudança.
Este complicado cenário que abriga a relação entre a administração pública e o servidor não permite que haja aporte de significado pessoal e profissional, inibindo o desenvolvimento de inteligência coletiva e emocional. Sem esse aporte é natural que o governo e o servidor, por percepções construídas a partir de premissas produzidas por esta desconstrução, reciprocamente deixam de se importar. Importar significa colocar-se dentro... O inverso, não se importar, significa permanecer fora... Importar, portanto, significa trazer para si, pertencer... Não é outra a razão de um dos maiores desejos de uma grande parte de servidores é aposentar-se e um dos maiores desejos de uma boa parte de governantes é substituir servidores.
Neste contexto, o governo estadual anuncia o encaminhamento para a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul de projeto de reforma administrativa. O problema, contudo, é que o conteúdo proposto, em sua maior parte, alcança questões remuneratórias, como alteração de regras para vantagens temporais, adicional por avanço de tempo de serviço, gratificações de permanência, incorporação de gratificações, previdência... Como são medidas focadas na área da despesa pública, o cenário, aqui comentado, não se descomplicará, ao contrário, ficará ainda mais tensionado.
O ambiente que deve recepcionar uma reforma administrativa é o da cultura institucional, reformulando maneiras de tratamento e de relacionamento, sistema de estímulos, integração e qualificação pessoal e profissional, recompensas, reconhecimento e política de recursos humanos clara e com valores e práticas objetivamente definidos. Definitivamente, não é fácil o tratamento deste cenário! Mas, mais difícil, ainda, é não o reconhecer como um problema, resumindo toda a sua causa à questão da despesa pública.