Quem não ouviu ou não disse, em algum dia, que “tal fato” pode ser legal, mas é imoral? É importante refletir sobre isso, pois ao contrário do que parece, essa afirmação não pode ser considerada como normal. Uma lei jamais pode ser imoral! Se resultar dela algum efeito que, em decorrência da sua aplicação, produza um resultado imoral, é porque em algum momento da sua elaboração, houve descuido quanto à confirmação de seu conteúdo ético.
A moralidade está prevista na Constituição Federal ao lado da lei, ou seja, a lei deve ser elaborada, interpretada e aplicada para o bem, na linha aristotélica, para a virtude. Por isso, a moral é colocada como um princípio, ou seja, dela tudo parte. Alexandre de Moraes, ministro do STF, explica que “pelo princípio da moralidade administrativa, não basta ao administrador o estrito cumprimento da estrita legalidade, devendo ele, no exercício de sua função pública, respeitar os princípios éticos de razoabilidade e justiça”. Pode-se, então, afirmar, como faz a administrativista Maria Sylvia Zanella Di Pietro, que a lei é um círculo menor que deve estar dentro de um círculo maior que é o da moral, e não ao contrário.
Mas por que em alguns casos a lei é permissiva, de forma a tolerar, pela sua aplicabilidade, consequências imorais? Porque, em determinadas situações, ela é elaborada de forma apressada, sem a maturidade de debate e sem exame de argumentação para a sua justificação, abrindo espaço para interpretações que favoreçam alguns grupos de pessoas; em outras situações, a lei não é cuidada na sua pós-vigência, e com isso ela vai perdendo contexto, o que a torna vulnerável, criando facilidades para que sua interpretação seja direcionada à obtenção vantagens pessoais ou coletivas que se distanciam do campo ético.
A lei chega até nós sob duas perspectivas: uma, no sentido de nos indicar o que fazer, por isso, na Constituição, é dito que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei; outra, no sentido de definir como o poder público pode atuar, por isso, na Constituição, é indicado que a administração pública só pode agir conforme a lei, de forma ética e impessoal, com eficiência, publicidade e transparência. A lei, portanto, por uma ou por outra via chega até nós, interferindo em nossa vida e essa intervenção não pode ser descolada da ética. Carlos Maximiliano, uma das maiores referências brasileiras em lei e em seu processo de interpretação, comenta que a lei, no atendimento de sua função social, só se justifica se se opuser ao que é imoral e se reprimir os atos contrários ao senso ético-social.
Retornando à Constituição, lá constam os fundamentos e os objetivos do estado brasileiro que vão desde a construção de dignidade humana e de uma sociedade livre, justa e solidária, com garantia de desenvolvimento, erradicação de pobreza e de desigualdade, até a promoção do bem de todos, sem preconceitos. Uma lei que não dialogue com estes fundamentos e objetivos morais não pode ser lei! Se é lei é porque faltou atenção e competência ao legislador.
O que se observa no Brasil é que as práticas legislativas não são generosas no debate sobre o conteúdo da lei, inviabilizando o alcance de uma das premissas apontadas pelo professor e constitucionalista espanhol Manuel Atienza como condição para que a lei alcance o patamar de ter qualidade social, que é a racionalidade ética, derivada de um consistente, real e plural debate parlamentar. Enquanto os parlamentos brasileiros não derem atenção ao aspecto moral da lei, seguiremos com este marcador de imaturidade democrática: “tal fato” pode ser até legal, mas é imoral!
André Leandro Barbi de Souza
Sócio-diretor do IGAM, advogado com especialização em direito político, sócio do escritório Brack e Barbi Advogados Associados