Na noite de Natal, em 1938, Jorge Luis Borges sofreu um acidente quase fatal. Ao subir correndo a escadaria do prédio onde morava a amiga Ema Risso Platero, bateu a cabeça no batente de uma janela. Foi atendido na hora e o ferimento suturado, mas o problema se agravou. Teve uma infecção, ficou uma semana sem dormir, alucinações e febre alta. Uma dada noite não conseguiu mais falar. Foi levado a um hospital, passou por uma cirurgia de urgência, teve septicemia e durante um mês se debateu entre a vida e a morte. Quando começou a se recuperar, temeu ter perdido a razão. Ao entender uma passagem de um livro, lida por sua mãe, chorou de emoção. Mas, ainda o atemorizava a dúvida se um dia voltaria a escrever. Até então havia escrito poemas, resenhas de livros e artigos breves. Se tentasse escrever algo desse gênero e fracassasse, estaria acabado intelectualmente. Então, decidiu tentar algo diferente de tudo que já havia feito. Se não conseguisse, seria justificável. Decidiu escrever um conto e assim nasceu o fantástico “Pierre Menard, autor del Quijote”.
O conto “Pierre Menard, autor do Quixote” saiu publicado, originalmente, na edição de maio de 1939 da Revista Sur. Depois foi incluído no livro Ficciones, de 1944, que junto com El Aleph (edições de 1949 e 1952) são, segundo o próprio Borges, as suas obras mais importantes. O Menard, personagem de Borges, é um romancista e poeta francês, que recém falecera (o narrador fora ao enterro), deixando uma obra visível, facilmente enumerável, contemplando sonetos, monografias, traduções, artigos técnicos e sobre suas paixões (xadrez, versos alexandrinos etc.), e outra inconclusa, monumental, singular, mas desconhecida, que foi a empreitada de ter escrito três capítulos da primeira parte do Quixote (9 e 33 completos e um fragmento do 22).
Pierre Menard, personagem e Borges, não queria escrever outro Quixote, pois isso seria fácil, mas sim O Quixote. A sua ambição era produzir páginas que coincidissem, palavra por palavra e linha por linha, com as originais de Miguel de Cervantes, mas que o resultado fosse outro livro. E conseguiu. Vejam o fragmento do capítulo 9 do Quixote. Escreveu Cervantes: “...la verdade, cuya madre es la historia, émula del tiempo, depósito de las acciones, testigo de lo passado, ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo porvenir.” E, da lavra de Menard: “...la verdade, cuya madre es la historia, émula del tiempo, depósito de las acciones, testigo de lo passado, ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo porvenir.” Parecem iguais, mas, insisto, NÃO SÃO!
A diferença, entre o texto de Cervantes e o texto de Menard, reside na diferença do universo simbólico que rodeia cada autor. Edgardo Gutiérrez, no livro Borges e los Senderos de la Filosofia, frisa que é a alteridade que faz a repetição de algo idêntico ser diferente. Não há texto idêntico. A recontextualização provoca a diferença na repetição. A existência do contexto faz a diferença.
A escolha, por Borges, do fragmento do capitulo 9 do Quixote, cuja referência é à história, não foi tão aleatória como poderia aparentar. De fato, a verdade da história aparece como a história da verdade, contingente, passível de ser reescrita. Para Menard, a verdade histórica não é o que aconteceu, mas o que julgamos que aconteceu. Esse conto anteciparia uma boa parcela da teoria literária que ainda estava por vir no século XX, no que diz respeito aos papéis do intertexto, da citação, da reescritura e do leitor como criador da obra.
Mas, e Pierre Menard, não o simbolista de Nîmes inventado por Borges, existiu? Sim, existiu. E quem nos apresentou ele foi Daniel Balderston, professor da Universidade de Pittsburgh, que, no livro How Borges Wrote, de 2018, ao mencionar o interesse de Borges por grafologia e que ele havia lido o livro L´Ecriture et le subconsciente: Psychanalyse et graphologie, de Pierre Menard, de 1931, e o homenageou como o personagem principal do famoso conto de 1939. E como Balderston chegou a essa conclusão? Elementar, lendo as anotações do escritor e o manuscrito do conto de Borges.