Atribuir ao acaso ou a uma mera questão de sorte a descoberta da penicilina (e no rastro os outros antibióticos), ainda que seja uma historinha interessante para distrair estudantes das séries iniciais dos cursos de medicina, é simplificar em demasia o papel da ciência nesse processo que foi responsável por salvar milhares de vida, curando doenças que, até então, eram, na prática, um diagnóstico de morte.
A insistência do papel da causalidade na revolucionária descoberta de Alexander Fleming é baseada em uma visão errada de ciência. Muitas pessoas, inclusive alguns membros da própria comunidade cientifica que atuam como autômatos, acham que fazer ciência é seguir um método, bastando ter um começo, percorrer um caminho traçado e, no final, obter o resultado. Isso não é ciência. Isso é linha de montagem. Mas, indiscutivelmente, na descoberta da penicilina, o acaso deu uma mãozinha.
Alexander Fleming (1881-1955), bacteriologista escocês, radicado em Londres, trabalhava no Hospital Saint-Mary, onde pesquisava princípios ativos antibacterianos e não tóxicos para o tecido humano. Em setembro de 1928, às vésperas de sair de férias, Fleming esqueceu (ou deixou) sobre a bancada do seu laboratório algumas placas de Petri cultivadas com colônias de estafilococos. Duas semanas depois, quando retornou, encontrou as placas com um mofo que parecia ter matado os estafilococos ao redor da colônia do fungo. Que fez Fleming? Simplesmente descartou as placas, lamentando o esquecimento e o trabalho que daria limpar aquilo? Contaminações desse tipo em laboratórios eram e são comuns. Não, ele não fez nada disso. Por ser uma mente bem preparada, especulou que uma possível substância antimicrobiana segregada pelo organismo perturbador causara a morte dos estafilococos. E, não se duvide, ele devia conhecer esse tipo de antagonismo entre microrganismos, que já havia sido reportado 50 anos antes por Tyndal (1875) e Pasteur (1877). Fleming, então, realizou experimentos com o fungo, do gênero Penicillium, que demostrara grande capacidade de absorção dos estafilococos. Em função do gênero do fungo, ele batizou a substância responsável pelo controle dos estafilococos como penicilina. Não a considerou promissora no controle de infecções humanas, pela instabilidade e falta de potencia, parando com o trabalho, mas não deixando de publicar, oito meses depois, os resultados que encontrara no Britsh Journal of Experimental Pathology (v.10, p. 226-236, 1929.).
Dez anos se passaram até um grupo de pesquisadores da Universidade de Oxford, liderado pelo químico alemão Ernst Chain e pelo patologista australiano Howard Florey, redescobrir o artigo de Fleming. Em condições de trabalho mais adequadas, decidiram vencer a instabilidade da substância e isolar o penicilato de sódio, que, inclusive, pensaram ser o estado puro da substancia antimicrobiana. Fizeram testes em ratos contaminados com estafilococos e os tratados com a substância, para surpresa, não morreram (mais uma acaso aqui, pois se tivessem usado cobaias, o resultado teria sido outro). Na sequência, Florey e Heatleys (outro colaborador do grupo de Oxford) foram para os EUA onde, no grande esforço cientifico da Segunda Guerra Mundial e contando com investimentos de vulto da indústria farmacêutica, formularam a penicilina que, em 1941/43, passou a ser usada no tratamento de doenças infecciosas.
Fleming foi reconhecido como descobridor da penicilina, eleito membro da Royal Society, sagrado cavaleiro da Coroa Britânica e, em 1945, Sir Alexander Fleming recebeu o Premio Nobel de fisiologia e medicina junto com Ernst Chain e Howard Florey.
Mesmo que Selman Waksman, agraciado com o Premio Nobel pela descoberta da estreptomicina (1949) e a quem se atribui ter cunhado o termo antibiótico, no seu discurso Nobel, ter considerado que a obtenção desses medicamentos foi um fenômeno fortuito, há mais que casualidade (muito mais!) por trás desse tipo de acontecimento, começando pelo vaticínio de Pasteur, que a causalidade somente ajuda às mentes bem preparadas.