Soa infeliz e dramática a frase que, amiúde, se atribui a Gustave Flaubert em seu leito de morte: “Eu morro como um cão e essa puta da Bovary vai permanecer”. Cruel, demasiadamente cruel, de parte do criador para com a criatura! Essa frase, de acordo com George Steiner, é a manifestação clara do paradoxo da angústia de um artista em face da sobrevida misteriosa da personagem, que surgida de palavras sem vida, rabiscadas em folhas de papel, seguindo o seu vaticínio, continuaria a viver.
Madame Bovary e Gustave Flaubert alcançariam, ambos, a imortalidade; apesar do pessimismo do escritor no leito de morte. E imortalidade no sentido de que, ainda hoje a criatura é lida e o criador lembrado e reverenciado. É a típica imortalidade que graceja quando um leitor qualquer, nas mais diferentes línguas que essa obra clássica ganhou traduções, abre o exemplar de um livro (ou manuseia um arquivo digital), trazendo criatura e criador à cena contemporânea.
Estamos falando da imortalidade da criação humana e, em particular de criação literária. E nesse sentido há que se fazer referência à mística heidggeriana, segundo a qual “somos falados” pela linguagem, que, no caso de um escritor poderia ser adaptada para o “ser escrito pelo texto”, ao estilo de Mozart quando dizia “uma sinfonia inteira me veio”, que são exemplificados por George Steiner à exaustão. Isso, que pode aparentar falsa modéstia, é criação.
Outra forma de imortalidade de um escritor pode ser alcançada por um erro de cópia do impressor, cujo exemplo mais notável, também muito citado por George Steiner, é a tradução que Thomas Nashe, dramaturgo e romancista elisabetano, fez para “Ballade des dames du temps jadis”, de François Villon, cujos versos “La clarté tombe des cheveux d`Hélène” (A claridade cai dos cabelos de Helena), que em inglês seria “Brightness falls from the hair”, mas, por uma falha tipográfica, resultou em “Brightness falls from the air” (A claridade cai do ar), transformando-se em um dos versos mais celebrados da língua inglesa e conferindo a imortalidade a Nashe. Queira Deus que a Gráfica Berthier cometa um erro desse tipo durante a impressão da obra de algum escritor passo-fundense!
Na essência do que chamou “As Gramáticas da Criação”, George Steiner questiona: Afinal, Deus criou ou inventou o universo? Um cientista cria ou inventa uma teoria? Um músico cria ou inventa uma melodia? Um matemático cria/descobre ou inventa um novo teorema? A responsa mais sensata pode ser encontrada na raiz da palavra grega “poiésis” que significa criar e não inventar (inventar deriva do latim inventare). Assim, quer seja nas ciências ou nas artes, a imortalidade somente pode advir da criação. É de “poiésis” que deriva a nossa palavra poesia, que, essencialmente, envolve criação.
Difícil falar em imortalidade literária ou em qualquer arte, quando, vivenciando uma crise cultural e de educação, o que vemos grassar são celebridades de talentos e gostos questionáveis, que, dificilmente serão lembrados pelas próximas gerações. Não é sem razão que uma alusão a um clássico encontra tanta dificuldade de ser entendida mesmo entre pessoas detentoras das mais elevadas titulações acadêmicas. Isso talvez seja explicável por, no Brasil, particularmente, vivenciarmos uma crise de leitura que afeta uma ou mais gerações, que se encontram espremidas entre as mais antigas e a atual, comprometidas (sequeladas) por sucessivas reformas de ensino que não deram os melhores resultados, uma vez que, nas Universidades, a preocupação maior foi com a difusão da cultura científica, relegando as Letras e as Humanidades a um segundo plano (inclusive nas notas exigidas para ingresso de novos alunos). E assim a ignorância se perpetua!
Por que Machado de Assis é imortal? Para você eu não sei, mas para mim porque ele, entre outras coisas memoráveis, criou Capitu, aquela mulher, personagem do romance Dom Casmurro, cujo olhar oblíquo, cheio de incertezas e de ambiguidades, sugeria quase tudo e revelava muito pouco. Olhe bem, que pode haver uma Capitu à sua espreita.