OPINIÃO

Uma vida em postais

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Um hábito que, acredito, tem os seus dias contados, é o de enviar cartões postais. Em tempos de Instagram, Facebook e WhatsApp é muito mais cômodo, dizem os aficionados, fazer um “self-portrait” e de pronto enviar a imagem digital a uma lista de amigos, que poderão curtir ou não esse seu momento vivido, do que sair em busca de um cartão de papel de 9 cm x 13 cm, escrever algo, sobrescritar um nome e um endereço, selar, encontrar uma caixa coletora de correspondências e, ufa, esperar que, dias depois, a mensagem chegue ao destino almejado.

Ainda que a troca de correspondência por cartões postais possa ser vista como um gênero epistolar menor e em franca decadência, mesmo assim, não pode ser desprezada como fonte primária de informação, quando o intento é produzir um retrato mais fidedigno de uma época e, especialmente, traçar o perfil de um biogrado. Pois, para explicar a vida não do escritor famoso e sim a do outro e verdadeiro Borges, que Nicolás Helft se debruçou sobre a coleção de cartões postais recebidos e especialmente enviados por Jorge Luis Borges, da infância à velhice, coletando uma produção borgeana, que, complementada por cartas, manuscritos de originais e anotações perdidas em cadernos pessoais do escritor, foi materializada no livro “Borges: postales de una biografía”, publicado, em 2013, pelo selo Emecé, do Grupo Editorial Planeta.

Admito que, embora tenha lido as principais biografias de Jorge Luis Borges, que são as escritas por Estela Canto, María Esther Vazquez, Horacio Salas, Alejandro Vaccaro, Edwin Williamson e o caudaloso diário “Borges” (1680 páginas) de Adolfo Bioy Casares; para citar apenas as mais conhecidas, livros como o do Nicolás Helft, que trabalha para a UNESCO como diretor do projeto Villa Ocampo (a famosa mansão de San Isidro, que pertenceu a Victoria Ocampo e foi sede da Revista Sur), me agradam bastante e, às vezes, me surpreendem. Apesar da óbvia repetição, sempre trazem algo novo, quer seja uma fotografia rara, fatos até então desconhecido ou, até mesmo, por apresentarem uma interpretação inédita ou a complementação necessária para o entendimento de episódios do passado, que têm sido reprisados à exaustão quando se trata da vida e obra de Jorge Luis Borges.

Jorge Luis Borges, segundo Nicolás  Helft,  escolheu o envio de cartões postais para a expressão de certas emoções, que, no seu estilo cifrado e breve, quase sempre os textos dizem muito mais do que está escrito. Senão, que razão teria para enviar cartões postais para a namorada (Estela Canto) ou para a mãe (Leonor Acevedo), uma vez que viviam em Buenos Aires e se viam diariamente? Coisas como “Te pido un signo de que aún existo para ti”, para Estela, ou, para sua mãe, “Te extraño a cada momento” e “ Yours ever”, sobrepostas em cartões cujas imagens fotográficas (Casa Rosada  ou Ponte Avellaneda, por exemplo) não guardam qualquer relação com o que foi escrito.

Uma particularidade, rememorada por Nicolás Helft, foi a influência da obra borgeana sobre o cineasta escocês Donald Cammell, que, no clima do Swinging London dos anos 1960, produziu o emblemático filme Performance, protagonizado por Mick Jagger e James Fox. Nessa película, Jagger interpreta o papel de uma estrela decadente do rock, aspecto andrógino, leitor de Borges, pacifista e cultor do misticismo oriental. E Fox é o rival de Jagger, um gangster violento, narcisista, amoral, sádico, homofóbico e ostentosamente macho. Numa cena emblemática, Jagger e Fox, que simbolizam os opostos, vão se transformando em um só, até que chega o momento que Fox diz a Jagger: “quero ir contigo” e dá um tiro e a câmara segue a bala que se mete na cabeça de Jagger e então aparece a figura de Borges, o poeta cego. Inclusive, consta que inspirado nessa cena, Donald Cammell, em 1996, cometeu suicídio com um tiro na cabeça. Segundo relatos da viúva, Cammel sobreviveu uns 30 minutos após esse tiro, tendo pedido um espelho para ver a sua cara e o momento da sua morte. E, num último suspiro, olhando-se no espelho, perguntou a ela: Did you see the picture of Borges?

Borgeano, demasiado borgeano, esse suicídio do Donald Cammell.

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