Dizem que as almas das comunidades dizimadas, escravizadas, pela perversidade dos homens, pairam em desafio ao tempo e lugar. A incógnita do ódio insano e a destruição causada por poderosos desalmados fermentam o ódio dos espíritos. Mais cedo ou mais tarde as monstruosas iniqüidades retornam em fúria, guiadas pela inatacável vingança da natureza, que não conhece os inocentes. Não nos é permitido desconhecer o ódio oficializado no somatório tétrico dos ainda laureados bandeirantes como Borba Gato, que expandiu nossas fronteiras, massacrando índios. O custo desse avanço foi cruento e repleto de extremas maldades. Aldeias que foram paraísos nativos de atrocidades, morte de crianças e adultos e estupros de mulheres. Ao mesmo tempo, o desatino lúgubre das oligarquias ditou três séculos de suplício, morte, torturas, mutilação dos corpos e a submissão escravista. O braço forte do escravo garantiu a riqueza das gerações de opressores. E ainda há quem defenda o desrespeito humano cometendo crime de discriminação racial. Crível ou não, a natureza alheia ao bem e o mal, aflige os povos deste planeta. Recusamo-nos a reconhecer o terror dos ódios, das guerras sempre injustas, os massacres causados pela mão e vontade dos humanos. Hoje temos um quadro da doença que se alia ao crime das cidades, a violência. A mente humana nega-se a conceber desígnios etéreos.
A dureza dos fatos que enlutaram nossa história foi vaticínio triste na grave reflexão de Castro Alves, o poeta da abolição. Lamentamos, mas o texto a seguir sugere dolorosa reflexão sobre o terror do ódio.
BANDIDO NEGRO
Trema a terra de susto aterrada.../Minha égua veloz, desgrenhada,/Negra, escura nas lapas voou./Trema o céu...ó ruína! Ó desgraça!/Porque o negro bandido é quem passa,/Porque o negro bandido bradou:
Cai, orvalho de sangue do escravo,
Cai, orvalho, na face do algoz,
Cresce, cresce seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz!
Dorme o raio na negra tormenta.../Somos negros ... o raio fermenta/Nesses peitos cobertos de horror./Lança o grito da livre coorte,/Lança, ó vento, pampeiro da morte,/Este guante de ferro ao senhor./
Eia! Ó raça que nunca te assombras/Pra o guerreiro uma tenda de sombras/Arma a noite na vasta amplidão./Sus! Pulula dos quatro horizontes,/Sai da vasta cratera dos montes,/Donde salta o condor, o vulcão./
E o senhor que na festa descanta/Pare o braço que a taça alevanta/Coroado de flores azuis./E murmure, julgando-se em sonhos:/“Que demônios são este medonhos/Que lá passam famintos e nus?”/
“Somos nós, meu Senhor, mas não tremas,/Nós quebramos as nossas algemas/Pra pedir-te as esposas ou mães./Este é o filho do ancião que mataste./Este – irmão da mulher que manchaste.../Óh! Não tremas, senhor, são teus cães!”/
São teus cães que têm frio e que têm fome/Que há dez séculos a sede consome.../Quero um vasto banquete feroz.../Venha o manto que os ombros nos cubra,/Para vós fez-se a púrpura rubra/Fez-se o manto de sangue pra nós,/
Meus leões africanos, alerta!/Vela a noite... a campina é deserta./Quando a lua esconder seu clarão/Seja o bramo da vida arrancado,/No banquete da morte lançado/Junto ao corvo, seu lúgubre irmão./
Trema o vale, o rochedo escarpado,/Trema os céus de trovões carregado,/Ao passar da rajada de heróis,/Que nas éguas fatais desgranhadas/Vão brandindo essas brancas espadas,/Que amolam nas campas de avós.