A pandemia do coronavírus não é a primeira a colocar a população passo-fundense em alerta e a impor restrições. Em 1918, a cidade, assim como o mundo, enfrentou a gripe espanhola. Na cidade de 7500 habitantes, 105 pessoas morreram devido a doença. “Relativizando para hoje, Passo Fundo, com 200.000 habitantes, uma mortalidade de 1,4% representaria cerca de 2.800 mortos”, analisa o historiador e presidente do Instituto Histórico de Passo Fundo (IHPF), Fernando Miranda. A doença mudou a rotina dos passo-fundenses da época e seus efeitos podem ser vistos até hoje. Conheça mais detalhes dessa história nesta reportagem baseada em material coletado e organizado por membros do IHPF.
Guerra e pandemia: o mundo em 1918
A Primeira Guerra Mundial, iniciada em 1914, estava em curso quando em meados de agosto de 1918 começaram a surgir notícias sobre um estranho mal nos jornais do Rio de Janeiro, então capital do país. “Sem, contudo, despertar grande atenção das autoridades públicas e da população em geral”, explica o vice-presidente do IHPF e doutorando em história pela UPF, Djiovan Carvalho. A doença assolava a Europa e a Ásia desde maio daquele ano, mas somente em junho uma informação de Londres identificou a doença como uma nova gripe. “Em um período de oito meses, percorreria o mundo matando entre cinquenta e cem milhões de pessoas”, explica o também doutorando em história pela UPF, Alex Vanin.
A gripe ficou conhecida como “Influenza Espanhola”, mas nas décadas posteriores foi revelado que a origem da doença era os Estados Unidos. A gripe chegou a Europa devido aos soldados norte-americanos. “O estigma do nome e atribuição espanhola se deu pelo fato de que, ainda durante o conflito mundial, a Espanha, nação neutra diante da disputa, gozava de uma imprensa livre e que não foi censurada ao noticiar a existência e a rápida disseminação da doença pelo mundo, censura que ocorria em muitos países, principalmente nos envolvidos na guerra, que buscaram suavizar o impacto da moléstia em seus territórios”, conta Djiovan Carvalho.
A gripe espanhola chega ao Brasil
“No Brasil, as notícias sobre a doença eram ignoradas ou tratadas com descaso”, conta Vanin. O descaso não impediu que a doença chegasse ao Brasil, o que aconteceu em setembro de 1918. O navio Demerara, procedente da Europa, desembarcou infectados em Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Historiadores dizem que parecia haver “um estranho sentimento de imunidade face à doença”, sentimento que reaparece em meio a pandemia atual. Um artigo cômico da revista “A Careta”, demonstra a desinformação sobre o problema. Nele é dito que a doença é uma criação dos alemães, que a espalharam pelo mundo com seus submarinos.
Com o tempo o vírus mostrou sua gravidade, vitimando inclusive o presidente da república. “Rodrigues Alves, eleito em março de 1918 para seu segundo mandato, cai de cama “espanholado” – como se designava, à época, os atingidos pela moléstia – e sequer chega a tomar posse”, relata Carvalho.
A Belle Époque passo-fundense
Enquanto o mundo era palco de uma grande guerra, Passo Fundo vivia o que pode ser considerada uma Belle Époque tardia. “Pode ser lembrada hoje como a época em que a cidade encontra a sua modernidade: as ruas se iluminam com a substituição do lampião a querosene por lâmpadas elétricas; a rede telefônica encurta distâncias; a instalação do primeiro banco agiliza o comércio; o primeiro cinema encanta os habitantes, e, entre outros movimentos, a área urbana adquire uma nova paisagem com a construção de hotéis e a inauguração de uma prefeitura "nova"”, relata Fernando Miranda.
O brilho da cidade era incentivado pela estação férrea, que trazia visitantes, mas que também trouxe a doença. A via férrea ligava o estado, via Passo Fundo, com São Paulo e o resto do país desde o ano de 1910. “O que foi identificado ainda naquele período, como meio de entrada da doença no município”, explica o presidente do IHPF. A gripe começou a se espalhar rapidamente a partir de outubro de 1918. “Causando rapidamente muitas mortes e colocando em alerta os órgãos públicos”, conta Miranda.
Prevenção
O Relatório do Intendente (o “prefeito” da época) Pedro Lopes de Oliveira, conhecido como Cel. Lolico, revela que a autoridade reuniu um corpo médico após os primeiros casos da gripe na cidade, tomando medidas profiláticas. Essas medidas são encontradas no jornal A Voz da Serra.
Entre as elas se destacam o exame e desinfecção dos trens, a suspensão da parada deles na plataforma do Hotel Internacional, e o “convite” aos infectados a não desembarcarem. Também ficou vedado o acesso a Estação durante a chegada e partida dos trens. A declaração ao corpo sanitário de casos confirmados ou suspeitos de gripe espanhola se tornou obrigatória. Os prédios com pessoas infectadas passaram a ser desinfectados e ficou vedado o acesso às casas com pessoas infectadas pela gripe. Essas casas eram sinalizadas com um cartaz.
Algumas medidas da época são semelhantes às tomadas hoje para evitar a disseminação do coronavírus. Entre elas está o fechamento de escolas públicas e particulares, além de estabelecimentos em que houvesse aglomerações, como cafés e cinemas. Ficou vedada também a venda de sais de quinino (a quinina é uma substância utilizada no tratamento de malária e arritmias cardíacas) sem receita médica para que não faltasse para os doentes. Também foi pedido para a população que seguissem as medidas para o “bem comum”. “[...] medidas que por mais desagradáveis que sejam teem por fim evitar maior mal”, diz o documento.
As vítimas da gripe
As medidas de prevenção não impediram que a doença se espalhasse pela cidade.“[...] já a influenza se alastrára por toda a cidade em uma infinidade de casos, que se sucediam, de momento a momento, paralysando o movimento geral”, revela o relatório do Intendente Cel. Lolico.
O recém-fundado Hospital de Caridade (antigo da Cidade e hoje, de Clínicas) atendeu os primeiros casos, sob a liderança de Francisco Antonino Xavier. Devido a gripe, os padres vicentinos, com o Pe. Rafael Iopp à frente, estruturaram melhor sua enfermaria que se transformou no Hospital São Vicente de Paulo. “Os dois estabelecimentos, com verbas da Intendência e doações de particulares, colocaram-se em socorrer à população infectada.”, relata Miranda. É importante lembrar que não havia vacina nem tratamento eficaz para a doença.
Mesmo atacando pessoas de todas as classes sociais, a gripe na cidade vitimou mais as pessoas de baixa renda. “Tendo em vista as condições sanitárias, de saúde e de alimentação”, explica Fernando Miranda. Uma das vítimas foi o fundador do jornal passo-fundense “A Voz da Serra”, Capitão Jovino da Silva Freitas, que fazia a cobertura jornalística da pandemia.
Na época também foi preciso distribuir comida à população. “A Intendência, feitas depois as contas, viu que tinha destinado 12% de toda a Receita Ordinária de um ano, no combate da doença”, conta Miranda.
O passado e o presente
Apesar dos efeitos devastadores da pandemia, o combate trouxe contribuições para o mundo. “Eu penso que podemos tirar duas lições da gripe espanhola”, diz Djiovan Carvalho. A primeira é a importância da disseminação de informações. “Tendo em vista que algumas potências tentaram ocultar o impacto do vírus nos seus países e isso acabou diminuindo a credibilidade, a gravidade da situação naquele momento, o que prejudicou muito e ampliou o número de mortes”, explica o historiador. Ele acredita que a partir desse momento as notícias do resto do mundo passaram a ser levadas com maior seriedade.
Em Passo Fundo, a grande contribuição é a estruturação do corpo médico. “Dois espaços hospitalares que tiveram que, assim como neste momento em que estamos vivendo, se adaptar às mudanças”, conta. Tanto o HC quanto o HSVP eram muito recentes quando a pandemia chegou na cidade e precisaram se estruturar para tratar os doentes. “Talvez a contribuição que a influenza espanhola tenha dado a Passo Fundo tenha sido uma preparação médica que chega aos nossos dias. Passo Fundo ao longo do século XX se consolida enquanto pólo médico, referência na saúde”, analisa Carvalho.
A gripe espanhola e o coronavírus possuem diferenças, inclusive em sua origem, mas seus efeitos e a forma de prevenção se assemelham, assim como as reações da população. “Quaisquer semelhanças entre os acontecimentos passados há cem anos e os de hoje quanto ao espalhamento da doença, a incredulidade da população nas informações e as medidas de restrição do contato social, são infelizes coincidências”, analisa Fernando Miranda.