Já se passaram seis décadas desde que resolvi na escola o primeiro ataque de bullying. Sentia que colegas do colégio particular vinham insistindo em menosprezo, ante minha situação perante a turma. Na verdade me encontrava entre meninos e meninas de uma elite financeira urbana. Nada de anormal. Minha origem era do interior e minha família lutava bravamente para viver com dignidade. Trabalhando desde criança, concluo que não morri. Tínhamos vacas leiteiras, galinhas e animais para completar a renda familiar. Vestia roupa simples sem o requinte dos demais colegas. Um dia, ia sair para aula e fui escalado para recolher uma vaca que escapou do curral. Na pressa nem percebi que a calça ficou embarrada. Um dos alunos e depois outros chamaram atenção e começaram a rir da mancha na roupa. Não demorou e comecei a bater em um deles. De pouca estatura (como até hoje), fiz valer-me por ser retaco. Nunca mais deixei de retaliar prenúncio de zombaria. Na verdade, agi erradamente, irascível à provocação. Era fato contornável. Hoje vejo as coisas com outro olhar, refletindo sobre as reações que ainda luto por controlar. Nem todos os que nos contrariam assim procedem por pura maldade. A própria fragilidade não assumida leva-nos a reações exageradas ou desaconselháveis. A natureza da profissão de jornalismo, em momento púgil, reforça esse caráter polêmico. A narrativa de denúncia ou situações mais graves fatalmente desagradam alguém, ainda que sempre tenha mantido respeito às partes. Nesta profissão não é fácil angariar simpatias, cumprindo o dever. O respeito, todavia, é provável. É preciso coragem. Hoje vejo veteranos da lida na comunicação que exerceram com retidão a missão de informar e opinar, mas que pagam o preço pela devoção à verdade perante as incompreensões. É assim, todo o jornalista sabe que não será unanimidade numa sociedade que também odeia a verdade. Inevitável que alguém o considere réprobo. A própria agitação dos tempos do ponto de vista dialético cria polêmica. “Veritas parit odium” (a verdade gera ódio).
Pessoas difíceis
Provavelmente seja o menor volume das publicações do consagrado autor Jorge A. Salton – Convivendo com Pessoas Difíceis. Um opúsculo, todavia, é de enorme valor pela revelação científica das relações entre todas as pessoas. Ninguém pode dizer que está fora das questões abordadas. A vertente do apreço que tenho pela obra não é a mera fragilidade pela ausência de outra visão literária. Procurei outras literaturas com alguma aproximação como Augusto Kury, autor internacional de renome, mas sem a mesma incisão específica. Tenho lido bastante sobre a escravidão no Brasil. Aceito, no entanto a crítica “timeo homo unius libre” (temo o homem de um livro só). A individualidade é importante a ser avaliada, como ensina Ernest Hemingway, na obra lida por todos – O Velho e o Mar. Tal indigência literária, no entanto, não impede a preocupação com a momentosa necessidade de melhor entendimento entre as pessoas.
Tolerância
Está aí uma questão: como despertar a consciência da compaixão quando a ordem é a disputa feroz pela simples vantagem material, ou de status social? Como responder ao momento inflamado dos relacionamentos, familiar ou na coletividade, em meio à pandemia. Os meios de comunicação eletrônica seguem frenéticos de chofre ao apelo solidário. Independentemente do nível cultural todos sabem que as maldades como meio de êxito só pioram. A inveja, o egoísmo, e seqüelas formam sistema agressor crescente, sem empatia, num desenfreado pensar maniqueísta. É esta limitação humana que precisa ser tratada, como diz Jorge Salton.
A ex-primeira dama Michele Obama fez conclamação em seu discurso eleitoral para juntarmos intenções decentes pela compaixão. É possível que a corrida desenfreada da eleição presidencial dos USA não perceba essa importância. A tragédia do coronavírus criou tanta dor e morte que a nova ordem deva ser da compreensão, sem ódio. Há ainda muita rispidez nos apelos de direitos que se confundem com mera vantagem. Talvez seja a hora de ouvir o que disse Lucrécio: “Apanha-se mais moscas com uma colher de mel do que com um barril de vinagre”.