Admito, sem usar figura de linguagem, que apesar de ter lido 10 vezes o livro “Essa estranha instituição chamada literatura”, de Jacques Derrida, não me sinto confortável em responder de chofre às perguntas: que é literatura? que caracteriza um texto como literário? para que serve a literatura?
Na famosa entrevista que Jacques Derrida (1930-2004) concedeu, em abril de 1989, a Derek Attridge, a questão central da conversação foi a literatura ou a visão “derridiana desconstrucionista” de literatura. Originalmente publicada em inglês na coletânea de textos de Derrida, organizada por Attridge, “Acts of Literature”, sob o título “This Strange Institution Called Literature”, a obra ganharia versão em francês, em 2009, e, em português, em 2014 (pela Editora da UFMG, tradução de Marileide Dias Esqueda a partir da versão inglesa e cotejo com a versão francesa por Evando Nascimento): “Essa estranha instituição chamada literatura: uma entrevista com Jacques Derrida”.
Para reforçar o famoso sintagma derridiano “que há sempre mais de uma língua implicada em todo enunciado que se queira desconstrutor”, as perguntas da entrevista foram em inglês as respostas em francês (embora, muitas vezes, Derrida, com sutil ironia, tenha reprisado a pergunta em inglês antes de responder). Ou seja, qualquer língua é feita de múltiplas línguas e de modos diversos de uso. Especialmente em literatura não há o monolinguismo puro. Há sempre pelo menos um bilinguismo e um relacionamento contaminado (com rastros ou traços deixados), segundo Derrida.
Não há nenhum texto que, por ele mesmo, possa ser considerado literário. O que se estabelece como literatura é o que deriva de convenções e intenções, por parte de quem escreve, e, como tais, são reconhecidas e aceitas por quem lê.
Não é fácil perceber que nem todo texto é, necessariamente, literário. E menos ainda que nem toda obra de ficção ou poética é merecedora do epíteto literária. Ou aceitar, passivamente, que uma obra não ficcional possa ser rotulada de literária e, apesar da ambiguidade que o termo ficção carrega, haja algo de ficcionalidade em toda literatura. Quer exemplos? Leia os livros e ensaios de Stephen Jay Gould (A falsa medida do homem) e de Richard Dawkins (O gene egoísta) sobre biologia para consolidar a crença que são textos tanto científicos quanto literários (e, como tais, com algum grau de “ficcionalidade”). Não se pode ignorar que é sempre possível inscrever como literário algo que não fora originalmente destinado para ser literário. Inclusive, a escrita, uma invenção humana relativamente recente, não era indispensável para que obras poéticas circulassem e materializassem o conceito moderno de literatura Ou seja, um texto literário não pertence a um único gênero.
Derrida resumiu literatura como uma estranha instituição que permite dizer tudo. E, apesar de tentador, esse “dizer tudo” não pode ser confundido com dizer “qualquer coisa”, em se tratando de uma instituição voltada à transgressão e à transformação da sociedade. Há, pela literatura, um poder tácito que é dado ao individuo, libertando-o de regras, para inventar, criar, dizer tudo o que queira ou que possa dizer, no caso do escritor, e, de entender, pelo leitor. Uma arma política muito poderosa. Não é por outra razão que uma das primeiras providências tomadas por regimes ditatoriais é a censura da produção literária. Para melhor entendimento de como os Estados, em regimes de exceção, influenciam a literatura, sugere-se o livro “Censores em ação”, de Robert Darton. O autor analisa a França dos Bourbons (privilégios e repressão), a Índia britânica (liberalismo e imperialismo) e a Alemanha Oriental Comunista (planejamento e perseguições).
Uma característica fundamental de uma obra literária é a iterabilidade. Essa propriedade permite, na repetição, que sejam mantidos o sentido e a efetividade em contextos diferentes. É pela iterabilidade que a leitura de um texto de Shakespeare, a exemplo de Romeu e Julieta, escrito em 1597, mantem-se atual ainda hoje.