Jornalismo impresso: um guardião de memórias

Historiadores analisam a importância do jornalismo impresso e local para a preservação da memória de uma comunidade

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O compartilhamento de informações nunca foi tão fácil quanto nos dias de hoje. A tecnologia, disponível na palma da mão de uma parcela significativa da população, simplificou o acesso às notícias e tornou a leitura de periódicos uma tarefa mais prática — ainda que, para os amantes do material físico, o online não tenha o mesmo charme. Mas a importância do jornalismo impresso vai bem além do ritual de folhear suas páginas durante o café da manhã. Periódicos impressos, conforme ponderam historiadores, são guardiões da memória local e documentos fundamentais para preservar e compreender a história de um povo. 

Olhando as páginas de um jornal centenário, por exemplo, o leitor encontrará não somente notícias consideradas importantes para as pessoas que viviam naquela época, mas também anúncios de produtos que costumavam ser consumidos décadas atrás e elementos visuais que revelam quais eram os recursos disponíveis para tal produção. A profundidade de memória presente em uma única edição de um jornal impresso, portanto, é significativamente superior àquela encontrada nos arquivos digitais de um portal exclusivamente online, que tende a armazenar somente textos e fotos isolados, sem o acompanhamento dos anúncios publicitários e todos os outros componentes citados. 

Desta forma, visto com um distanciamento temporal, o jornal impresso deixa de ser apenas um noticiário. Ele passa a ser um documento coberto de significados contemporâneos àquela sociedade, conforme explica o historiador e vice-presidente do Instituto Histórico de Passo Fundo (IHPF), Djiovan Carvalho. “A sociedade está em constante transformação, ela passou por diversos processos e períodos, e é muito interessante poder acompanhar isso a partir de um jornal. Jornais longevos permitem que a gente perceba mudanças sociais e aprenda um pouco mais sobre uma determinada população. Nós conseguimos ver o passado acontecendo ao ler um jornal de maneira sequencial. No caso do jornal O Nacional, que está próximo de completar seu centenário de fundação, nós temos quase cem anos ininterruptos de informação comunicada por um veículo”, explica.

Djiovan Carvalho é historiador e vice-presidente do IHPF.



Para o historiador, ainda que a tecnologia permita o armazenamento de informações em larga escala, a guarda de memórias é um papel que a efemeridade da internet ainda não se mostrou tão eficaz em cumprir. Ao contrário dos materiais impressos, frequentemente preservados em arquivos, as notícias publicadas em um site ou em uma rede social tendem a se perder pelo ciberespaço. “O material impresso tem um suporte, o papel, que permite com que ele seja lido continuamente. Agora, se pensarmos em uma situação em que temos a substituição desse papel por informações lidas na internet... Nós ainda não sabemos como iremos gerenciar todas essas informações da internet no futuro. Ainda não temos uma garantia de que tudo isso estará preservado daqui 100, 150 anos”. Sem a garantia de preservação desses materiais, conforme a análise de Carvalho, o resultado pode ser um apagão de informações fundamentais para a produção de narrativas históricas, que possibilitariam entender a constituição da comunidade retratada tão continuamente nos textos de determinado veículo.

 

Almanaques do cotidiano

Considerando a teoria do historiador francês Pierre Nora de que, nas sociedades contemporâneas, é somente por intermédio dos meios de comunicação de massa que um acontecimento marca presença — ou seja, sem tornar-se conhecido através da imprensa, um acontecimento corre o risco de cair no esquecimento —, é possível refletir ainda sobre a importância de um jornalismo não apenas impresso, mas também local, que foge da centralização de redações restritas às grandes capitais e dá atenção aquilo que acontece dentro de cidades interioranas. Não à toa, jornais locais são chamados de “almanaques do cotidiano”: afinal, são eles que reúnem diariamente, da editoria de cultura e esportes à de cotidiano e saúde, uma coleção de informações sobre os fatos que interferem no dia-a-dia de uma comunidade. 

O mesmo não acontece em um jornal de abrangência nacional, em que é impossível relatar a realidade de tantas cidades de forma simultânea. A tendência é de priorizar assuntos mais amplos e superficiais em relação aos acontecimentos de um município em específico. Estes, por sua vez, somente serão veiculados caso sejam considerados completamente extraordinários. “Nós até podemos ter notícias de uma comunidade a nível nacional, mas perdemos uma ideia de cotidiano daquelas populações”, reflete o historiador Djiovan Carvalho. O apontamento é similar ao feito pelo colega de profissão e presidente do IHPF, Fernando Miranda, para quem o jornalismo local é peça imprescindível para formação identitária.

Fernando Miranda é historiador e presidente do IHPF.


Doutora em História e coordenadora do Arquivo Histórico Regional (AHR), Gizele Zanotto ressalta o valor de jornais locais e microrregionais para a aproximação de conteúdos à realidade próxima. Embora acontecimentos de âmbito internacional, nacional e estadual sejam relevantes para contextualizar fatos localizadas, ela considera que a percepção de como esses se desenrolam no local e microrregional evidencia a diversidade de apreensões e ações sobre a realidade. “Considero fundamental termos essa aproximação para informar quanto para formar o público leitor e, em decorrência, para salvaguardar as histórias e memórias que o jornalismo propicia a pesquisadores. Nesse sentido, mais do que produzir jornalismo local e microrregional, é necessário que essa produção seja qualificada e que a função social da imprensa seja marca das e nas redações”, aprecia.


Fidelidade de informação

A qualidade da informação é também destacada pelo presidente do IHPF. Por funcionar em um tempo menos imediatista do que o da internet, Fernando Miranda acredita que os jornais impressos são mais cautelosos durante a apuração de informações, tornando-se mais confiáveis e seguros na informação que transmitem. “Frente à mídia digital, o jornal impresso passou a representar um tempo que passa mais lentamente. Na mídia digital, o cotidiano é apresentado como um filme em alta velocidade, que se esvai e desaparece, atropelado pelo próximo segundo. O jornal impresso fixa uma realidade do hoje, como uma fotografia do presente, cristalizando para o futuro um momento que foi importante na história da sociedade”, classifica.

Na mesma lógica, a professora de Jornalismo e doutora em História Marialva Barbosa afirma, em um artigo publicado no ano de 2012, que a escrita “confere à memória um caráter oficial e uniformizador” e que “ao silêncio ou a memória silenciada e esquecida, contrapõe-se, portanto, uma memória publicada, oficializada”. Desta forma, através da veiculação de um acontecimento, o trabalho jornalístico se legitima como um documento oficializador e resistente ao tempo. Eticamente, então, não é cabível a irresponsabilidade de veicular em um material com valor histórico informações errôneas ou, tampouco, escolher silenciar uma memória por motivos políticos, levando pouco a sério o papel do jornalismo. Ato assim seria capaz de deturpar a memória coletiva de uma nação.


Salvaguarda da história local

Se o jornalismo é o guardião de memórias da sociedade, os arquivos são os guardiões de memórias dos jornais. É impossível falar na importância do ofício jornalístico para a produção de memórias sem falar na igual importância dos acervos para a preservação delas. Em Passo Fundo, o Arquivo Histórico Regional (AHR) e o Instituto Histórico de Passo Fundo (IHPF) são os principais responsáveis por fazer salvaguardada da história local, armazenando edições de dezenas de periódicos que servem de fonte de pesquisa para a comunidade e historiadores locais. O presidente do IHPF chama a atenção ainda para a convergência entre impresso e digital na preservação desses materiais: “Em Passo Fundo, temos dois jornais diários que são quase centenários e que nos oferecem uma grande variedade de temas que podem ser objetos de pesquisa. Disponíveis no Instituto Histórico de Passo Fundo e no Arquivo Histórico Regional, esses jornais estão em boa parte digitalizados, evitando assim o manuseio e a deterioração, além de tornar a pesquisa mais ágil e eficiente”, descreve.

No caso do jornal O Nacional, embora existam exemplares sob cuidados do IHPF, é principalmente na guarda do Arquivo Histórico Regional que 96 anos de jornalismo encontram abrigo. Segundo a coordenadora do Arquivo, graças à parceria estabelecia há anos, o acervo mais robusto e completo de um periódico em salvaguarda da entidade é justamente o de ON. São cerca de 27.500 exemplares, que compreendem o período de 1925 aos dias atuais, e que seguem chegando ao acervo semanalmente. “O tipo de organização que temos de nossos acervos e fundos documentais não se volta à quantificação, o que dificulta ter dados efetivos para expressar o amplo e diverso volume de materiais de imprensa que temos sob guarda do Arquivo, mas arisco a dizer que temos um montante de 50.000 edições de órgãos locais, regionais e mesmo nacionais. Ampliando para imprensa em geral, o montante ultrapassa seguramente 100.000 edições entre jornais, revistas, almanaques e outros materiais”, contabiliza. No IHPF, são mais quatro mil exemplares de jornais, sem contar com o acervo de coleções encadernadas. O mais antigo dos periódicos sob cuidados do Instituto, segundo o vice-presidente, data de 1822, época em que o Brasil ainda era colônia de Portugal.

Para Gizele, arquivos exercem uma função social como local de guarda e de fonte para a comunidade e para pesquisadores que podem acessar gratuitamente materiais que auxiliam na compreensão da construção histórica local e regional. “Afora o imediatismo com que a cultura geral tem se manifestado no cotidiano, nesses tempos globalizados e ‘velozes’, a ancoragem e conhecimento de como o presente se sustenta por ações sócio-históricas e culturais do passado é uma necessidade. Necessidade não só de conhecimento, mas de vivência cidadã e responsável, crítica da realidade atual como algo dado, acabado, imutável”. 

Gizele Zanotto é doutora em História e coordenadora do Arquivo Histórico Regional (AHR).


A historiadora explica ainda que entender processos históricos leva a população a valorizar ainda mais conquistas como a democracia, a liberdade de imprensa, a diversidade religiosa e outros direitos sociais, além de compreender a construção plural da cultura local, a organização socioespacial das cidades; a construção e manutenção de preconceitos,  entendimento da importância da constituição de universidades enraizadas no local e regional, e a criação e manutenção de entidades, órgãos sociais e de comunicação afeitos ao local e regional. “Essa realidade derivou de lutas, de ações de homens e mulheres que se voltaram à defesa e ampliação de seus direitos não só para sua geração, mas como patrimônio para o futuro. Para isso, mais do que memórias (narrativas do hoje sobre o passado), necessitamos história. E, para potencializarmos o estudo histórico, fontes são imprescindíveis – daí a importância ímpar de arquivos históricos, institutos históricos, centros de cultura, museus e outros espaços de guarda dos vestígios de nosso passado coletivo”, finaliza.


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